dezembro 21, 2014

"Ditadura da Sexualidade: Experimentação Indeferida", por Rafael Lauro

PICICA: "Há incontáveis maneiras de se relacionar com o mundo. As possibilidades de vínculo entre pessoas são também infinitas, apesar da nossa vontade de tudo catalogar: amigos, ficantes, namorados, casados, coloridos, estepes, prometidos, profissionais, de fachada… Enfim, o que nos intriga nesses nomes é a sua justificação. Eles servem mais a quem os pronuncia ou a quem os ouve? Cada caso é um caso, claro. Não estamos fazendo uma caça às bruxas no terreno dos predicados, só não resistimos à tentação de questionar os nomes. Por que algumas interações corporais são estruturantes do nosso modo de ser? Por que não há plasticidade em determinados tipos de relação? Estamos falando de sexo, é claro."

Ditadura da Sexualidade: Experimentação Indeferida

 

Há incontáveis maneiras de se relacionar com o mundo. As possibilidades de vínculo entre pessoas são também infinitas, apesar da nossa vontade de tudo catalogar: amigos, ficantes, namorados, casados, coloridos, estepes, prometidos, profissionais, de fachada… Enfim, o que nos intriga nesses nomes é a sua justificação. Eles servem mais a quem os pronuncia ou a quem os ouve? Cada caso é um caso, claro. Não estamos fazendo uma caça às bruxas no terreno dos predicados, só não resistimos à tentação de questionar os nomes. Por que algumas interações corporais são estruturantes do nosso modo de ser? Por que não há plasticidade em determinados tipos de relação? Estamos falando de sexo, é claro.

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Este ímpeto pelo nome tem ao menos uma justificação. Na questão das minorias, o nome é um elo entre semelhantes que se encontram à margem de alguma normatividade, seja sexual, de gênero, de classe. Um ótimo exemplo é o do nome “vadias”, um uso subversivo, contundente, que hasteia em torno de si uma bandeira, um nome comum para uma só luta, de recusa do modelo fêmea submissa, tão livremente propagado por aí afora. É um uso bastante legítimo do nome, logo não é isso que aqui viemos criticar. A referência aqui é ao que costumam chamar de rótulos, e que ótimo nome para este problema!


Entramos no supermercado. Diversas prateleiras se apresentam. Toda uma diversidade categorizada em suas minúcias. Até uma simples banana vem propriamente adesivada. Não há espaço para a surpresa, pois todos os elementos vêm devidamente identificados nas embalagens, em ordem decrescente de presença nos produtos. Em algumas prateleiras é até possível encontrar o açúcar ocupando a primeira posição em todas as tabelas: um show e tanto! Escolhemos nossos produtos de acordo com a preferência… Às vezes, só queremos ir ao corredor dxs “heterossexuais”, devidamente identificados, é claro. Oi? É aí que a digressão foi longe demais.


Passamos a exigir dos outros – e de nós mesmos – condições que se nos apresentam nos produtos. Alçamos a identidade a um mecanismo de organização das diferenças. Queremos catalogar de acordo com a pertinência e deixar bastante longe o indesejável. E que resta da experimentação? Onde fica o espaço para o novo? Talvez os tenham reservado um lugar super especial no porão.


Vivemos a época da experimentação indeferida. Podemos ser o que quisermos desde que apresentemos bons motivos. Não nos enganemos, é só um movimento colonizador: a experiência não pede passagem. Lembra-me perfeitamente a anedota do colonizador português que diz ao Índio: “reconheço-te desde que fales minha língua”. O mesmo acontece quando a sociedade exige que, para que seja reconhecido enquanto parte legítima dela, um casal gay siga padrões heteronormativos.


Outro engano que, com Foucault, devemos evitar: o poder não reprime, ele produz. Através de uma pergunta, carregada ou não de algum daqueles rótulos, ele nos dispõe nas prateleiras, nos pendura nos cabides, nos enquadra nas molduras. Muitas vezes, por trás de uma pergunta inofensiva, se encontra em ato essa vontade de tudo adestrar. Nunca foram tão necessárias as respostas lúdicas, os duplo-sentidos, as atuações… Não para mascarar, mas para de fato preservar um espaço.


Qual a reação de uma pessoa que não recebe uma resposta unívoca para a sua pergunta? Esperamos que ela mantenha o campo de respostas sem preenchimento, seu cadastro em branco. Não devemos ter medo de perder boas oportunidades afetivas quando rodopiarmos com as respostas, pelo contrário, é assim que demonstraremos maior abertura para o que nos acontece.


Felizmente, como ressalta Judith Butler, o discurso do poder tem um grande defeito: para fabricar os seus indivíduos, ele depende de sua própria reiteração contínua. Quando um minuto se passa em algum lugar sem que alguém se use de um mecanismo disciplinar, nasce uma diferença, irrefletida, espontânea como a flor de lótus. Um modelo de resistência surge em todo hiato no edifício da instituição, assim como as trepadeiras vão engolindo as rachaduras dos prédios.


Não há plasticidade no ato sexual, há repetição ad nauseam. Onde há vontade, desejo, experimentação, há uma sentença de morte correspondente, isto é, uma denúncia, um julgamento, um impedimento. Onde se inventam novas maneiras de se relacionar, aparece a lei (do homem ou de deus) para regulamentar. O novo sempre nasce em estado de constrangimento, diria Deleuze. É preciso que ele se mantenha abaixo da superfície por um tempo para então, num impulso, emergir com toda força.


Por que é que no minuto que nos relacionamos sexualmente (seja lá o que isso for!) com alguém, automaticamente aquela relação se carrega com o peso de mil perguntas? Não temos a resposta. Na realidade, pouco importa o porquê. Importa é pensar se o nome está potencializando o ato, revigorando a relação, vitalizando o encontro ou apenas podando suas mudas, rotulando o indeterminado. Qual o nosso interesse em ter na sexualidade um termo tão forte de definição?


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Fonte: Razão Inadequada

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