dezembro 23, 2014

"LEITURA DA HISTÓRIA POLÍTICA UNIVERSAL", por José Paulo Bandeira

PICICA: "O discurso do capitalista se inscreve na política transformando o eleitor em súdito (escravo). Por que o significante cidadania desapareceu da linguagem política do século XXI? A dialética senhor/ escravo no modo de produção capitalista deixa de ter uma interpretação economicista, quando ela é lida pela sua tradução na política. Tal dialética perde também sua canga idealista – uma dialética somente das formas de consciência – para se transformar em uma dialética materialista da política. O ponto de partida é o S1 (capital) no lugar da verdade. No discurso do capitalista, o Urstaat desaparece como aparelho de captura do excedente, vindo o capital a ocupar tal lugar. O Capital de Marx concebe tal fenômeno no capitalismo liberal do século XIX. No século XX, o capitalismo monopolista de Estado reintroduz o Estado como aparelho de captura da mais-valia. A crise do capitalismo monopolista de Estado permitiu ao globalismo neoliberal se constituir como uma vontade de abolir o Estado como aparelho de captura da mais-valia. Tal capitalismo acreditou na possibilidade definitiva da travessia do fantasma do Urstaat. Trata-se de uma época na qual os intelectuais passaram a elaborar também sobre a possibilidade do fim do capitalismo (Altvater: 218). O capital quer abolir o Estado e os marxistas querem abolir o capitalismo pelo imaginário. A cultura política do dinheiro sonha com a utopia do fim do Estado e o marxismo economicista com o fim do capitalismo sem necessidade de uma revolução social. Trata-se do marxismo como cultura política totalitária em uma era na qual a luta de classes não ocupa mais o centro da política mundial. A classe operária tornou-se escrava real do capital! Trata-se da paz do discurso do mestre moderno (discurso do capitalista) que sustenta a ideia de escravidão no século XXI. O aparelho de Estado psíquico do discurso do capitalista articula o corpo do escravo (população) como perinde ac cadaver, tal como um cadáver."

LEITURA DA HISTÓRIA POLÍTICA UNIVERSAL



“Há certas maneiras de usar categorias tais como o inconsciente, a pulsão, a relação pré-edipiana, a defesa, que consistem em não tirar delas nenhuma das consequências autênticas que elas comportam, e em considerar que é um negócio que concerne aos outros, mas que não toca no fundo de nossas relações com o mundo” (Lacan. As psicoses: 83)
 O ponto de partida deste texto é o estabelecimento da contraciência lacaniana da política. Tal empreitada só é possível através de uma leitura lacaniana da metapsicologia freudiana. No Mais além do princípio do prazer, Freud escreveu: “Levando esse curso em conta na consideração dos processos mentais que constituem o tema do nosso estudo, introduzimos um ponto de vista “econômico” em nosso trabalho, e, se, ao descrever esses processos, tentamos calcular esse fator “econômico” além dos “topográficos e “dinâmicos”, estaremos, penso eu, fornecendo deles a mais completa descrição que merece ser distinguida pelo nome de ‘metapsicologia” (Freud. v. XVIII: 17). Como ponto de partida, o lugar do mito na contraciência lacaniana da política se constitui pela tradução da metafísica em metapsicologia. Tal leitura começa no fim da obra de Lacan centrada na teoria dos discursos. Esta inaugura a possibilidade efetiva do campo lacaniano da política para além da psicologia do indivíduo e da psicologia de grupo. É necessário ir além do conceito de metapsicologia de Freud? Em Freud, o mito é um artefato simbólico através do qual homens, mulheres e crianças se relacionam na sua existência concreta com o campo das pulsões traduzido como desejos (Freud. XIII: 106; Cassirer. 1976: 52). O mito é uma criação inconsciente (Cassirer. 1973: 75). Como a pulsão é um ser mitológico, esbarra-se na Kundaline (a serpente que morde o próprio rabo), um símbolo arquetípico da cultura política sânscrita. O mito da fusão do sujeito com das Ding é pura mitologia freudiana? A mitologia não deriva de um desejo dos indivíduos no sentido de se identificarem com a vida da comunidade e com a vida da natureza? Esse desejo não é satisfeito pelos ritos religiosos? Aqui os indivíduos não se fundem em um todo homogêneo? (Cassirer. 1976: 54). O desejo de se fundir com o Urstaat não é o fantasma-mestre da história da espécie humana, fantasma esconjurado pela sociedade primitiva? A propósito, “A descoberta da língua e da literatura sanscríticas constitui um acontecimento decisivo no desenvolvimento da nossa consciência histórica e na evolução de todas as ciências culturais. Em sua influência e importância pode ser comparada à grande revolução intelectual provocada através do sistema copernicano, no campo da Ciência Natural” (Cassirer. 1976: 33). O mito não é um simples artefato. A ferramenta ou meio de ação adquire uma existência independente, ela é dotada de forças próprias. Em vez de ser dominada pela vontade dos homens, ela torna-se um deus ou um demônio que submete o homem ao seu poder. O homem assujeita-se a ela, devendo honrá-la em um culto religioso (Cassirer. 1973: 76). Assim, o artefato não passa jamais por um simples produto, fruto de uma reflexão e de um trabalho livres, mas por um dom vindo de cima. Sua origem não remonta ao próprio homem, mas a um “saber”, seja ele divino, seja animal. Este remeter todos os bens culturais ao “saber” é tão generalizado que é possível encontrar na ideia de saber o nó da origem da ideia de deus (Idem: 77). Sobre a passagem do mito para a estrutura, Lacan concebe o mito freudiano (Pai real) como enunciado do impossível. Trata-se do animal despótico que goza de todas as mulheres. O pai real é um efeito da linguagem, de um saber (estrutura). O único pai mais real que o próprio real é o espermatozóide. No mundo da vida, o pai real é o agente castrador, ou seja, ele é introduzido por um outro mito: o mito do Édipo (Lacan. S. 17: 116, 117). No discurso do analista, o analista é o pai real do aparelho psíquico freudiano. Ele é o a agente da castração que faz o analisando (“paciente”) retomar a tragédia edipiana. Trata-se do analista como efeito do inconsciente estruturado como linguagem, ou seja, como simulacro de linguagem. O analista não está no lugar da razão que governa a alma do “paciente” (Platão).  Governar, analisar, educar são os impossíveis freudianos (Freud. XXIII: 282). Devemos acrescentar aí o mito. Se o discurso do mestre é constituído também, em silêncio, pela cultura política, o analista está assujeitado à cultura política laica freudiana: “E como se pode pensar que é por uma devoção ao nome de Freud que os analistas são o que são? Eles não podem se desvencilhar dos significantes-mestres de Freud, só isso. Não é tanto por Freud que eles se atêm a apenas um certo número de significantes – o inconsciente, a sedução, o traumatismo, a fantasia, o eu, o isso, (a pulsão de morte) e tudo o mais que quiserem – eles não podem, de modo algum sair dessa ordem (Lacan. S. 17: 122). Estes significantes articulam mito e psicanálise na cultura política laica freudiana. O saber é uma categoria central na teoria dos discursos. A ideia de instinto como saber é quase universal. Assim, a pulsão de morte é do reino do saber. O saber é o gozo do Outro (Lacan. S. 17: 14, 12) no discurso do mestre. Na passagem do mito para a estrutura, a pulsão de morte aparece como um saber mítico da cultura política freudiana? Esta seria a cultura universal da história da espécie humana a partir da emersão do discurso do mestre (Urstaat) na civilização arcaica? A desarticulação deste saber (pulsão de morte) por uma cultura pós-freudiana não poderia significar um novo começo para a história da espécie humana?                 
A metáfora é uma condição da formação da língua e dos conceitos míticos. Ela enreda um liame espiritual entre linguagem e mito. Na origem, há uma correlação entre linguagem e mito. Depois, eles se desacoplam progressivamente a título de membros independentes. São ramos diferentes de uma única e mesma pulsão ordenados em forma simbólica (Cassirer. 1973: 106, 110). Assim como os conceitos linguísticos gerais – pelo processo metafórico -  se remetem à ordem mítica, a linguagem política guarda traços míticos em sua estrutura. Isso é mais acentuado na estrutura da cultura política do que na política in nuce. Mas pela metáfora, a tradição não se inscreve na política moderna? As formas (artefatos) simbólicas – linguagem, política, arte, cultura política, moral, direito, Estado, ciência etc. – tem uma terra comum: o mito. O desenvolvimento das formas simbólicas leva a uma separação entre elas e a ordem mitológica (Cassirer. 1973: 59, 61), principalmente no caso da ciência (Funkenstein: 100-107; 412-413). A linguagem não pertence exclusivamente ao domínio do mito; desde o início, uma outra força age sobre ela: o logos. Como a linguagem, a arte em seu início, se revela estreitamente mesclada ao mito. Mito, linguagem e arte formam primeiro uma unidade concreta ainda indivisa, que não se separam senão progressivamente em uma tríade de modos de figuração espirituais independentes (Cassirer. 1973: 120-121). A política in nuce adquire uma autonomia absoluta em relação ao mito? De fato, ela adquire uma autonomia relativa, mas continua sendo determinada em última instância pela lógica do mito. A relação da pulsão de morte com o Urstaat e a máquina de guerra freudiana é um exemplo cabal de tal lógica.  Mas a pulsão de morte, a máquina de guerra freudiana e o Urstaat não são conceitos míticos, são conceitos lógicos! (Cassirer. 1973: 48-50).

No Seminário 16, Lacan diz que o inconsciente é o inconsciente do discurso (Lacan. S. 16: 68). No Televisão, ele enuncia que é só no discurso analítico que ex-siste o inconsciente freudiano: “Interpolo aqui uma observação. Não baseio essa ideia de discurso na ex-sistência do inconsciente. É o inconsciente que situo a partir dela – por só ex-sistir a um discurso" (Lacan. 2003: 517). Trata-se da sociedade, pois “O discurso que digo analítico é o laço social determinado pela prática da psicanálise” (Idem: 517). Esta concepção cristalina do inconsciente freudiano nos remete para a ideia de que o aparelho psíquico freudiano só existe na prática analítica (Nasio: 122-123). Ou seja, o aparelho psíquico freudiano – isso, eu, supereu – é o aparelho do discurso do analista? Em Freud, isso é claro?

Para Freud, a terapia analítica tem um limite concreto. Ela só é possível de ser exercida sobre a neurose: “A experiência nos ensinou que a terapia psicanalítica – a libertação de alguém de seus sintomas, inibições e anormalidades de caráter neuróticos – é um assunto que consome tempo” (Freud: v. XXIII: 247). Tal enunciado fica claro, quando ele exclui a possibilidade da prática analítica beneficiar o psicótico: “Como é bem sabido, a situação analítica consiste em nos aliarmos com o ego da pessoa em tratamento, a fim de submeter partes do seu id que não estão controladas, o que equivale a dizer, incluí-las na síntese do ego. O fato de uma cooperação desse tipo habitualmente fracassar no caso dos psicóticos, nos fornece uma primeira base sólida para nosso julgamento” (Idem: 267). “De fato”, a psicose é um ponto cego no pensamento de Freud que o levou a enunciar coisas absurdas sobre os psicóticos, como veremos mais tarde! A cultura psicanalítica totalitária tem como ponto de partida a visão freudiana vulgar da psicose! Fazendo o laço Freud com Lacan, só o neurótico poderia ocupar um lugar no funcionamento do discurso do analista. Este põe e repõe o neurótico no caminho da “vida normal” pela articulação da ética ao discurso do analista. Trata-se da ética de Aristóteles associada ao Bem-dizer. A pesar deste não dizer onde está o Bem: “Pois, que outra coisa seria a famosa tensão menor com que Freud articula o prazer senão a ética de Aristóteles? (Lacan. 2003: 522). Sendo a felicidade o mais belo e mais agradável dos bens, Aristóteles defini a felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se bem (Aristóteles: 27, 26). O belo e o agradável só podem produzir prazer. O princípio do prazer é a lei do bem que é o wohl ou bem estar (Lacan. 1966: 766).  Então a ética da cidade grega faz pendant com a ética da cidade freudiana para os neuróticos. Em Freud, somente os neuróticos tem direito à cidadania através de sua inserção no discurso do analista? Para os neuróticos, “A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas são demolidas, ao passo que outras são identificadas, mas construídas de novo, a partir de material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é bastante diferente do das anteriores; podemos confiar em que cederão facilmente ante uma maré ascendente da força instintual. Dessa maneira, a façanha real da terapia analítica seria a subsequente correção do processo original de repressão, correção que põe fim à dominância do fator quantitativo” (Freud. v. XXIII: 260). O fator quantitativo refere-se ao poder irresistível da força das pulsões. Isso torna possível a ética da cidade para o neurótico. Nas próprias palavras de Freud: “No curso de poucos anos, foi possível devolver-lhe grande parte de sua independência, despertar seu interesse pela vida e ajustar suas relações com as pessoas que lhe eram mais importantes” (Idem: 248). É uma versão minimalista da ética da cidade de Aristóteles. Esta é a ética da cultura política da polis.

Há uma interrogação que assola o campo freudiano. Como definir o aparelho psíquico freudiano? A existência dele não sustenta o significante homo clausus e a psicologia do indivíduo? A teoria dos discursos não abole o homo clausus e a psicologia do indivíduo? A teoria dos discursos tem como ponto de partida a sociedade, a sociologia. Entretanto para Freud, o aparelho psíquico é uma construção empírica, uma construção na biografia privada onde intervém a cultura com o estabelecimento do simbólico. Trata-se da passagem da soberania do animal despótico para a soberania da comunidade dos irmãos na horda primitiva. Totem e Tabu! A antropologia freudiana sustenta a soberania do significante cultura no campo freudiano. Na contraciência lacaniana da política, o discurso assume a soberania sem eliminar o papel importante da cultura na superfície política no mundo da vida. Mas trata-se de cultura política. Para Freud, o aparelho psíquico é constituído na infância sem a interferência de qualquer discurso. A criança vive a relação cultural através dos pais e outros sujeitos. O significante simbólico já é uma complicação nesta montagem empírica do aparelho psíquico. Quando Freud recorre ao mito (Édipo), não se trata de uma metáfora, como veremos mais adiante. O progresso do campo freudiano faz a ponte entre o empírico e o discurso pela ideia de que o mito é uma parte indestrutível do campo da ciência. Como isso não pode ser verdade, a psicanálise toma a via da contraciência. Segundo Freud, “De todas as errôneas e supersticiosas crenças da humanidade que foram supostamente superadas não existe uma só cujos resíduos não perduram hoje entre nós, nos estratos inferiores dos povos civilizados ou mesmo nos mais elevados estratos da sociedade cultural. O que um dia veio à vida, aferra-se tenazmente à existência. Fica-se às vezes inclinado a duvidar se os dragões dos dias primevos estão realmente extintos” Freud; v. XXIII: 261). No seu Por que a guerra?, em 1932, ele escreve a Einstein: “Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo atualmente, a respeito da sua física?” (Freud. v. XXII: 254). Sejamos claros: a física é uma ciência e a psicanálise (assim como a etnologia) é uma contraciência. Mesmo apoiado em topologia, o campo lacaniano da política só pode se constituir como contraciência. A topologia lacaniana torna possível a impossibilidade de uma matematização da política. Mas a topologia lacaniana é e não é uma topologia. 
A propósito, o mito é constitutivo do aparelho psíquico freudiano. Mas isso já não é metapsicologia?  No Complexo de Édipo, o mito inscreve a criança em uma relação trágica parental. Aí a estética constitui a criança como trágico. A relação anterior ao Édipo tem a Mãe (das Ding) no centro da vida da criança. Mas a relação é também constituída esteticamente. O grotesco e o patético definem a relação da criança com a Mãe. Na teoria mitológica das pulsões (Freud. v. XXII: 255), a pulsão de morte é mitologia in nuce. Ela habita um espaço abstrato não constituído pela estética. Isso é importante para entender a relação da pulsão de morte com o discurso universal da história da espécie humana: o discurso do mestre. No entanto, é preciso considerar que não podemos esquecer a lição de Tucídides sobre a historiografia em sua relação com a mitologia: “À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista de que os fatos na antiguidade foram muito próximos de como os descrevi, não dando muito crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e amplificando os seus temas, e de outro considerando que os logógrafos compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a verdade, uma vez que suas estórias não podem ser verificadas, e eles em sua maioria enveredaram , com o passar do tempo, para a região da fábula, perdendo, assim, a credibilidade” (Tucídides: livro I, cap. 21). Tucídides estava tratando com artefatos (fatos discursivos), não com fatos. Mas isso não invalida a ideia dele de que o uso do método histórico consegue escapar do domínio da fábula. Hoje graças à Freud e à etnologia, sabemos que é preciso integrar o mito à política como artefato simbólico tratado pela contraciência lacaniana da política.  
II   
  
Quando Lacan usou a dialética do senhor/escravo hegeliana para uma leitura do desejo (Dor: 166-190), ele introduziu o discurso do mestre para pensar o obsessivo e a histérica. O obsessivo refere-se ao modelo do senhor. Mas assim como o obsessivo não se toma pelo senhor, a histérica se introduz no discurso do mestre por não se tomar por mulher (Lacan. S. 16: 259-260, 370-371). A dialética lacaniana senhor/escravo é o meio interpretativo através do qual o obsessivo e a histérica são pensados.  Por exemplo, “A aposta da partida é o gozo do homem, a quem a mulher se prende, se escraviza, como faz o senhor com o escravo” (Idem. 372). Mas também é possível introduzir o discurso do mestre para pensar a relação da criança com a Mãe (das Ding). A criança começa sua vida articulada pelo discurso do mestre que não a abandona em sua vida adulta, quando ela ex-siste como um tipo existencial - histérico, obsessivo etc. Tal discurso sustenta a repetição do processo patológico que o discurso do analista quer evitar (Freud. XXIII: 251). Este vai além, pois ele é um modo de evitar que o supereu atormente o eu por qualquer motivo, envolvendo a irrupção da força da pulsão de morte. Ele também atua no sentido de conter a pulsão de morte como uma força destrutiva na relação do eu com o outro, ou Outro. 
O modo de evitar os fenômenos supracitados implica a criação de um aparelho psíquico virtual pelo funcionamento do discurso do analista que continua a existir na biografia privada – do indivíduo beneficiado – depois do encerramento da análise: “Nos anos que se seguiram ao restabelecimento, ela foi sistematicamente desafortunada. Houve desventuras em sua família, perdas financeiras e, à medida que ficava mais velha, via desvanecer-se toda esperança de felicidade no amor e casamento. Mas a ex-inválida resistiu a tudo isso valentemente e constituiu um apoio para a família, nos tempos difíceis” (Freud. v. XXIII: 254). Há o espaço abstrato criado pelo discurso do mestre funcionando na biografia privada pelo aparelho psíquico virtual. Isso permite no mundo da vida um desacoplamento entre a biografia individual e a Fortuna. A Fortuna é uma forma mitológica integrada ao inconsciente freudiano do “paciente” por um processo de simbolização, mais do que pela razão reflexiva. Isso marca a diferença entre o sujeito da antiguidade grega (Platão) e o sujeito do discurso do analista, o sujeito freudiano. O sujeito de Platão deve através da razão reflexiva buscar a harmonia com as outras partes da alma: a pulsional e a afetiva (Badiou: 156-157). O sujeito freudiano deve buscar o bem viver pela integração ao inconsciente – via simbolização – daquilo que inclusive o atinja desafortunadamente. Nisso, o papel do eu é capital. Não existe o eu normal. Isso é uma ficção. Todo eu neurótico se aproxima, na biografia individual, do eu do psicótico (Freud. Idem: 268) que é avesso ao discurso do analista. Este tem como tarefa construir um eu normal – uma ficção ideal. “Mas um eu normal dessa espécie é, como a normalidade em geral, uma ficção ideal. O eu anormal, inútil para nossos fins, infelizmente não é ficção. Na verdade, toda pessoa normal é apenas normal na média. Seu eu aproxima-se do eu psicótico num lugar ou noutro, e em maior ou menor extensão, e o grau do seu afastamento de determinada extremidade da série e de sua proximidade da outra, nos fornecerá uma medida provisória daquilo que indefinidamente denominamos de “alteração do eu” (Freud. v. XXIII: 268) O problema latente na análise de Freud seria o seguinte: o eu psicótico (“os psicóticos seriam as máquinas de fala” (Lacan. S. 3: 52)) - é o eu fáctico capaz de conduzir a máquina de guerra freudiana? Os seriados policiais da televisão americana operam com esta ideia. O eu do psicótico é mais favorável ao gozo da violência contra o outro, ou o Outro. Isso é o real para Freud! Ele é capaz de conduzir, inclusive os neuróticos, para a situação estrutural de máquina de guerra freudiana que dorme em qualquer homem: “É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva” (Freud. v. XXII: 243) - como ou no caso da guerra entre nações, ou da guerra civil molecular, ou, ainda, no caso do estado de guerra freudiano. Homo homini lupus! Freud é o último grande pensador do Romantismo alemão e, ao mesmo tempo, comunga com a cultura política realista criada, literariamente, por Plautus na antiguidade romana.  A máquina de guerra freudiana pode ser encontrada como um fragmento da vida primitiva dos povos indo-europeus. As Antiguidades germânica e escandinava apresentam um irmão do homo sacer no bandido e no fora-da-lei: wargus, wargr, o lobo, e, no sentido religioso, o lobo sagrado, vargr y verum (Agamben: 119) O homo sacer é tratado como uma máquina de guerra freudiana, algo que está além do direito – ou do discurso do analista – algo fáctico só possível de existir na superfície onde reina o discurso do mestre? O antigo direito germânico articulava-se sobre o conceito de paz. Trata-se da paz do discurso do mestre que sustenta a ideia de escravidão. O aparelho de Estado psíquico do discurso do mestre articula o corpo do escravo como perinde ac cadaver, tal como um cadáver. Este significante designava a maneira como, pelas Constituições de santo Inácio de Loyola, um jesuíta deveria obedecer a seus superiores (Lacan. S. 16: 370). De fato, tratava-se de instaurar a paz na Companhia de Jesus. Os jesuítas viviam em um estado de rebelião permanente na Companhia. O Brasil colonial viveu tal estado de rebelião permanente principalmente na era pombalina. “No geral em 1763. Foi repetida em 1789. No regime pombalino houve uma mediada de ordem geral em 1763. Foi repetida em 1789. O resultado não podia deixar de ser fatal. A disciplina, ante os obstáculos à ação das autoridades centrais, entrou em grave crise” (Holanda: 75). O notável historiador brasileiro Francisco Falcon transformou em nota de rodapé a expulsão dos jesuítas do território brasileiro pelo Marquês de Pombal (Falcon: 221, nota 45). O homo sacer está excluído da comunidade como malfeitor, que tornava-se por isto friedlos, sem paz, e, como tal, podia ser morto por qualquer um sem que se cometesse homicídio. Pombal tratou os jesuítas como equivalentes ao homo sacer? Este remete para a ideia do bando – como máquina de guerra freudiana – que aparece no modo de produção medieval. O integrante do bando medieval podia ser morto ou considerado já morto (Agamben: 110). 
A máquina de guerra freudiana é vista como um ser mitológico, pois está fora da articulação da sociedade pelo Direito. Ela é, nesse sentido, homóloga ao Urstaat, e ao homo sacer? O homo sacer é uma entidade mitológica. Mas o Urstaat é a passagem do mito para a estrutura. Ele é o déspota real (Marx. 1971: 435): Ele é o funcionamento do discurso do mestre divino, suposto divino pela população (Idem: 438). Há um operador estrutural divino em tal discurso. O suposto é o motor do poder sem limite do mestre e do poder de usufruir do sobretrabalho e do mais-gozar (riqueza). O suposto é a alavanca do discurso do mestre divino. Ele suspende a barreira (Δ)no matema do fantasma no discurso do mestre, transformando o ($ Δ a) em ($◊ a). Isso define a existência do fantasma do Urstaat no discurso do mestre e o gozo do mestre não-castrado. O paradoxo se instaura pela relação entre o discurso do mestre e a religião. A máquina de guerra freudiana opera por algo equivalente a um operador estrutural divino. Ela também é a passagem do mito para a estrutura, conservando um determinado caráter mitológico. É preciso considerar a lição de Gadamer de que a participação em uma herança cultural é uma condição de possibilidade de todo pensamento, incluindo a reflexão crítica. A compreensão está vinculada com a interpretação com uma articulação na linguagem do intérprete de sentidos constituídos em um outro universo de discurso (Gadamer: 611).  A contraciência lacaniana é a junção de Freud (Romantismo alemão) e de Lacan (Ilustração europeia). Há um hiato entre Freud e Lacan. A contraciência é o intérprete gadameriano, ou seja, aquele que serve de intermediário no diálogo entre sujeitos que falam línguas diferentes. A diferença ente Freud e Lacan abre uma clareira a partir da qual é possível articular os problemas da contraciência lacaniana da política. A clareira é a base geosimbólica para o reconhecimento e o conhecimento da floresta. O significado de um texto é, em princípio, incompleto, aberto a interpretações desde perspectivas futuras. Cada época tem que entender a tradição escrita a seu modo. “Também aquilo que vem ao encontro de nosso conhecimento histórico a partir da tradição ou como tradição – histórica ou filologicamente -, o significado de um evento ou o sentido de um texto, não é um objeto em si, que deva ser simplesmente constatado. Também a consciência histórica incluía, na verdade, a mediação entre o passado e presente. Ao reconhecer o caráter da linguagem como médium universal dessa mediação” (Gadamer: 613). Lacan afirma que só ex-sistem discursos (Lacan. 2003: 539) e que o fato é, na verdade, artefato (Lacan: S. 18: 12-13). Para Gadamer, “o ser que pode ser compreendido é a linguagem” (Gadamer: 612). A interpretação do passado pressupõe uma interpretação do futuro como um artefato na causalidade da produção do contemporâneo. Em relação à religião, como não temos o monopólio da verdade ou da bondade, temos de nos manter abertos às crenças e valores dos outros. Temos que estar dispostos a considerar a religião como algo mais que o ópio do povo. O materialismo dialético só progredirá quando integrar isso a seu campo de reflexão. Um marxismo não-totalitário implica a simbolização de que a religião não é o ópio do povo. Isso não nega a existência, como acontecimento histórico do século XXI, da contrarrevolução religiosa na política mundial. 
É essencial uma releitura da problemática da religião em Freud e Lacan. Em Lacan, deus é o Outro enquanto real. Deus não é enganador. O que assegurava, na natureza, a não-mentira do Outro como real são as coisas, na medida em que elas voltam sempre ao mesmo lugar, ou seja, as esferas celestes, no regular retorno dos astros e dos planetas. “A noção das esferas celestes como o que, no mundo, é incorruptível, de uma essência outra, divina, habitou muitíssimo tempo o próprio pensamento cristão, a tradição cristã medieval, que era herdeira desse pensamento antigo” (Lacan, S. 3: 80). O poder da esfera divina é sublinhado nesta página cristalina de Lacan. No entanto, o Deus simbólico é o Deus de Platão. Deus é perfeito e só faz o Bem (Platon: 929). O cristianismo tem uma ideia de Deus semelhante à de Platão. Ao contrário, o divino como grande Outro da civilização arcaica é semelhante ao Diabo de Goethe: 
Mefistófeles -  Sou parcela do Além,
Força que cria o mal e também faz o bem! (Goethe: 59).
Isso era o Urstaat para a sociedade da civilização arcaica. Tratava-se de um poder diabólico, de um poder fáctico suposto como divino pela população: poder artefático como “Real simbólico”. A propósito, a ideia de Deus - como uma inteligência na Natureza, como nos animais, uma inteligência como causa da ordem e da ordenação universal - é uma ideia de Anaxágoras. Mas ele atribuía tal ideia a seu antecessor Hermotime de Clazomène (Aristote:35). Trata-se também de um deus ex machina para a produção do devir (Idem: 38). Cassirer escreve que para Xenófones existe um deus uno, o maior entre os deuses e os homens, que nem na forma e no pensamento se assemelha aos homens (Cassirer. 1976: 72). Mas somente em Platão, origina-se, na antiguidade, finalmente, a ideia de um Deus bondoso que, portanto, só pode fazer o Bem.    
        
III
O Romantismo Alemão e a contrarrevolução religiosa em escala mundial são a prova de que a razão reflexiva já não pode conceber-se como absoluta; ela está enraizada em um complexo contingente da tradição. Na década de 1940, Cassirer escreveu: “Talvez o mais importante e a mais alarmante característica desse desenvolvimento do pensamento político moderno tenha sido a aparição de um novo poder: o poder do pensamento mítico. A preponderância do pensamento mítico sobre o pensamento racional é óbvia em alguns dos nossos modernos sistemas políticos” (Cassirer. 1976: 19). O século XXI não está cada vez mais povoado por pensamentos e práxis mitológicas, fazendo pendant com as estruturas? É difícil perceber o progresso acelerado dos fundamentalismos religiosos, da cultura política totalitária religiosa ou laica, da contrarrevolução religiosa na política mundial, da máquina de guerra freudiana, da máquina de guerra jurídica heideggariana, do estado de guerra freudiano, do povo-freudiano, do capitalismo oligárquico mundial e da sombra cada vez mais presente do Urstaat através do Estado despótico capitalista?    
A produção do contemporâneo só começa, quando o presente inicia uma interpretação global do passado. Isso começa com a retomada da dialética Ilustração versus Romantismo do final do século XVIII. A Ilustração era a soberania do logos sobre o mito. O Romantismo inverteu tal lógica. Na contraciência lacaniana da política mito e logos encontram-se em um equilíbrio de antagonismos. Isso não é a verdadeira passagem do mito para a estrutura? Isso não põe ou repõe nenhum problema a respeito do começo como, por exemplo, a lógica hegeliana conhece o problema do começo da ciência (Gadamer: 609).                  
O campo freudiano tinha como preocupação básica que seus “pacientes” encontrassem o caminho da cura, da criatividade e da autorrealização. Na contraciência lacaniana da política, trata-se de tornar inteligível a presença das máquinas de guerra: a máquina de guerra freudiana, a máquina de guerra sadeana, a máquina de guerra jurídica heideggeriana. Freud definiu a psicose e a perversão (Roudinesco: 585) pela clivagem do eu (ichspaltung). Trata-se da coexistência no cerne do eu de duas atitudes contraditórias. Trata-se de uma clivagem ou spaltung que consiste em rejeitar a realidade (renegação=Verleugnung) e que também consiste em aceitá-la (Freud. XIX: 182. Freud. XXI: 180-183). Lacan estendeu a noção de clivagem à própria estrutura do indivíduo em sua relação com outro. Para Lacan, a clivagem pode ser do eu mas também do sujeito. Na teoria do discurso, é preciso pensar o sujeito humano como duplamente dividido – uma primeira instância separa o eu imaginário do sujeito do inconsciente, e uma segunda instância se inscreve no próprio interior do sujeito do inconsciente para representar a divisão do sujeito original (Roudinesco: 121). O homem é partes de si contra partes de si com a possibilidade remota de integrar esta dialética ao eu clivado, partido. Isso torna possível a existência da máquina de guerra freudiana a partir dos três tipos existenciais: neurótico, psicótico, perverso. Na teoria kleiniana, a perversão revela-se ligada a uma pulsão feroz de autodestruição e destruição do objeto. Ela se torna a manifestação da pulsão de morte em estado bruto (Roudinesco: 586). O eu perverso é a superfície onde, como agente, ele conduz a realização da pulsão de morte in nuce. Isso é a máquina de guerra sadiana. “Não é possível imaginar que esse sadismo seja realmente um instinto (pulsão) de morte que, sob a influência da libido narcísica, foi expulso do ego (eu) e, consequentemente, só surgiu em relação ao objeto?” (Freud. v. XVIII: 74).  Os relatos no Os 120 dias de Sodoma ou a escola da libertinagem podem ilustrar esta ideia sombria para o leitor: 
45. Este mesmo enche todas as aberturas de uma mulher de pólvora, ateia fogo, e todos os membros se partem e se separam ao mesmo tempo (Sade: 354).
75. Aquele que gostava de furar a bunda com alfinetes a apunhalava de leve todos os dias. Estanca-se o sangue, mas não se faz curativo, e ela morre assim, lentamente.
75bis. Um fustigador serra todos os membros suavemente, um após outro (Sade: 360)  
Lacan fez da máxima seguinte de Sade - “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho que me dê gosto de nele saciar” - o avesso do bem em Kant (o princípio do prazer é a lei do bem que é o wohl ou bem-estar) que é objeto da lei moral (Lacan. 1966: 768-769). Lacan pretende mostrar que a estrutura perversa se caracteriza pela vontade do sujeito de se transformar em um objeto de gozo oferecido a Deus, - seja ridicularizando a lei, seja por um desejo inconsciente de se anular no mal absoluto e na autoaniquilação (Roudinesco: 586). O objetivo era retirar a perversão do campo das perversões sexuais e abrir caminho para novas perspectivas terapêuticas. Tratava-se de afirmar a possibilidade de cura e de garantir ao perverso o direito de exercer a profissão psicanalítica. Então, o perverso tornou-se um possível sujeito a marcar sua presença no discurso do analista, como analista e analisando. 
O psicótico não se inscreve no discurso do analista, como analisando: “Em outras palavras, o psicótico pode usar a linguagem normalmente, mas falta a ele o fundo inconsciente que dá às palavras que usamos sua ressonância libidinal, sua cor e seu peso específico. Sem esse fundo, a interpretação psicanalítica é impotente, inoperante” (Zizek: 496). O psicótico efetivamente usa a linguagem como instrumento neutro secundário - a linguagem como um sistema de signos artificial e secundário para transferir a informação preexistente - que não diz respeito ao próprio ser de quem fala. Uma visão mais consistente da psicose aparece através do personagem do romance O Idiota. É possível considerar o príncipe Míchkin como psicótico pois, ele vivia “naquela espécie de delírio ambulatório em busca sabia lá de quê! (Dostoiévski: 256). Ou pelo fato de que ele possuía um demônio (uma voz interior) que dizia que ele estava sendo perseguido por Rogójin, e ele não sabia se isto era um fato ou um delírio (Idem: 260, 259). A clivagem do eu é apresentada – através da figura de Míchkin – ao longo da narrativa. No entanto, O Idiota só será problematizado como psicótico se transformado em um objeto da contraciência lacaniana da política, pois se trata de uma biografia privada – a de Míchkin – em uma situação na qual a cultura política, no mundo da vida da Rússia, tem uma função vital na vida do personagem. Míchkin é realmente um psicótico? Freud viu Dostoievski como uma possível máquina de guerra sadiana. Ele era dotado de uma “disposição instintual inata e pervertida, que inevitavelmente o marcava para ser um sadomasoquista ou um criminoso (...). Não obstante, o equilíbrio de forças entre suas exigências instintuais e as inibições que se lhes opunham (mais os métodos disponíveis de sublimação) tornariam mesmo assim necessário classificar Dostoievski como sendo aquilo que é denominado de ‘caráter instintual’. Contudo, a posição é obscurecida pela presença simultânea da neurose (Freud. v. XXI: 207). “Caráter instintual” significa o sujeito à mercê da pulsão de morte, assujeitado – como máquina de guerra sadiana – à realização da pulsão de morte nos significantes ou objetos (outro, Outro) que constituem a sociedade. Freud introduziu a cultura política como uma força que modela a subjetividade do grande pensador russo - a cultura política integrada ao aparelho de Estado psíquico -, que funcionou como interdição à emergência da máquina de guerra sadiana (há uma possível confissão de um ataque sexual a uma garotinha): “Tampouco o resultado final das batalhas morais de Dostoievski foi muito glorioso. Depois das mais violentas lutas para reconciliar as exigências instintuais do indivíduo com as reivindicações da comunidade, veio a cair na posição retrógrada de submissão à autoridade temporal e espiritual, de veneração pelo czar e pelo Deus cristão, e de um estreito nacionalismo russo” (Idem: 205). Apesar disso tudo, o artista criador escreveu o melhor romance do século XIX que tratou a psicose como um objeto virtual, como um objeto da lógica do simulacro.            
Na contraciência lacaniana da política o enfoque recai em um outro aspecto. Se o desejo é o desejo do Outro, os homens e mulheres tornam-se máquinas de guerra sadiana nessa busca do desejo do Outro, na medida em que isso constitui o tirano -, “Pode-se erigir em dever a máxima de contrariar o desejo do tirano, se o tirano for aquele que se arroga o poder de subjugar o desejo do Outro” (Lacan: 1998: 796). Isso (o tirano) é a máquina de guerra sadiana, pois subjugar o desejo do Outro significa um poder sem limite. O tirano é uma figura que remonta ao Urstaat que é o poder sem limite na civilização arcaica como aparelho de captura do excedente ou do mais-de-gozar; o poder que subjuga o desejo do Outro. Trata-se do discurso do mestre. A máquina de guerra sadiana funciona por uma clivagem do eu que é o instrumento da realização da pulsão de morte. É a pulsão que encontra (ou não) um objeto de satisfação na realidade (Dor: 182). A máquina de guerra sadiana não articula o discurso do mestre à pulsão de morte? No entanto, isso não quer dizer que a obra de Sade antecipou Freud, mas que ela operou um aplanamento que teve de caminhar cem anos nas profundezas do gosto para que a via de Freud fosse viável (Lacan. 1966: 765), como o último artefato do Romantismo alemão.


IV
Desde a história da civilização arcaica, a espécie humana vive sob o domínio do discurso do mestre. A partir daí é possível falar em aparelho de Estado psíquico. O aparelho de Estado psíquico é o aparelho psíquico do discurso do mestre que articula o Estado arcaico (Urstaat). No discurso do mestre, o fantasma está localizado na parte inferior do matema: ($ ◊ a). Lacan fala do rompimento da relação entre o pequeno a (mais-gozar) e o $, o S barrado do sujeito. Segundo Lacan, o ◊ [significante-corte separador e reunidor do sujeito e do objeto (Nasio: 127)] não faz a junção entre o $ e o a no discurso do mestre. Há uma barreira entre $ Δ a. Isso significa a impossibilidade de travessia do fantasma do Urstaat em tal discurso? A travessia só seria possível com o deslocamento para o discurso do analista, onde “o pequeno a ocupa o lugar do semblante, e é o sujeito que fica em frente a ele. Esse lugar em que ele é interrogado, é aí que a fantasia deve assumir seu status, definido pela própria parcela de impossibilidade que há na interrogação analítica” (Lacan. S. 18: 27-28; S. 17: 101)). Veremos depois que a travessia é possível no discurso do capitalista (discurso capitalista), na medida em que este discurso abole o Urstaat. No discurso do mestre, S1 é o Urstaat que - ao cair para o lugar da verdade como $ - faz punção (◊), virtualmente, com a ($ ◊ a). Na realidade, há uma barreira (Δ) fática entre $ e a ($Δ a). “Essa fórmula, como definidora do discurso do mestre, tem seu interesse por mostrar que ele é o único a tornar impossível essa articulação que apontamos em outro lugar como a fantasia, na medida em que é a relação do a com a divisão do sujeito - $ ◊ a.
Em seu ponto de partida fundamental, o discurso do mestre exclui a fantasia. E é isto exatamente o que faz dele, em seu fundamento, totalmente cego” (Lacan. S. 17: 101).
O estado virtual do fantasma-Urstaat significa que para o sujeito não há a possibilidade da articulação que é a fantasia, na medida em que isso é o ponto cego do discurso do mestre: a impossibilidade da travessia do fantasma em tal discurso. Neste, o Urstaat está no lugar do agente e como fantasma no lugar da verdade. O Urstaat é o S1 (significante-mestre) na posição de senhor na dialética senhor versus escravo. Este está no lugar da produção ou perda. No discurso do mestre, o Urstaat aparece claramente como aparelho de captura do excedente, da riqueza produzida pelo escravo. E o senhor (Faraó, por exemplo) -  que é a personificação divina do Urstaat - se apropria do mais-gozar. Um gozo que pode ser visto pela fórmula: “deixar viver, fazer morrer”. No discurso do mestre, há necessidade de remexer nas fantasias mortíferas (Lacan. S. 17: 101). A fantasia do Faraó é: “matar a população”. Um gozo relativamente próximo do significante senhor absoluto (Lacan, S. 17: 28; (Hegel. 1966; 119). E a população – no lugar da produção ou perda - pode ser definida como o significante vida, ou seja, o conjunto de forças que resiste à morte. Isso define a superfície política no discurso do mestre da civilização arcaica. Trata-se da política arcaica in nuce. Na contraciência lacaniana da política é preciso tomar como ponto de partida o discurso do mestre e seu aparelho psíquico: o aparelho de Estado psíquico. E também partir da possibilidade virtual – ficção lógico-empírica – da suspensão da barreira na relação do mestre com o mais gozar. O poder divino do Faraó é o significante-corte (suspender) que abole a barreira fáctica supracitada. A lógica do simulacro/espectro é um aspecto estratégico na interpretação para o campo lacaniano da política. O fantasma do Urstaat existe como espectro (simulacro) barrado facticamente. O poder divino do faraó é capaz de fazer o espectro de fantasia – ($◊a) - funcionar como causa do desejo do mestre. Pela sua natureza divina, o Faraó não é interditado pelo tabu do incesto. Para ele, a cultura não funciona como lei que barra o incesto, ou seja, como estrutura simbólica. No entanto, o Faraó não é bestial - animal despótico -, pois a cultura política arcaica legitimava o incesto para a nobreza do Egito da civilização arcaica.  O S1 divino é instaurado em uma cadeia de significantes produzida ex nihilo como cultura política divina. Talvez a antropologia não tenha superado a ideia de Frazer de que a lei do incesto continuava a ser um problema quase tão obscuro como antes (Cassirer. 1976: 49). 
Lacan faz a crítica da mitologia de Deus como causa sui. Isso se exprime miticamente no fato de que Deus se produz a si mesmo graças a seu nome (Cassirer. 1973: 101-102). Ao contrário, só há causa depois da emergência do desejo (Lacan. 2005: 65). {Associar desejo com causa não constitui um mito de uma espécie de cultura política laica?} Trata-se de desconstruir a ideia de Deus como um ser espiritual que pensa o mundo e utiliza o verbo como um meio de expressão e um instrumento de criação, e é causa de si. (Cassirer. 1973: 63). Na mitologia, é frequentemente o nome de deus, e não o próprio deus, que aparece como o verdadeiro momento forte (Idem: 65). Isso coloca a função da perversão quanto à sua relação com o desejo do Outro como tal. Isso significa que o perverso se reduz ao ato de pôr contra a parede a apreensão ao pé da letra da função do Pai, do Ser Supremo. Petrificando sua angústia, o perverso instala-se como tal por tomar Deus como desejo interessado na ordem do mundo (Lacan. 2005: 75). A estrutura da perversão constitui-se tomando o nome de deus como significante que articula o simbólico. Nela, o nome-do-pai não é um símbolo, mas parte da propriedade direta daquele que o porta (Cassirer. 1973: 67). Na cultura política romana, a relação entre personalidade e nome mantém tal característica. Quando o direito romano forja o conceito de personalidade jurídica, ele recusa esta legitimação a certos sujeitos físicos, ele recusa o nome-do-pai em um sentido jurídico. Os escravos não podem ter um nome no direito do Estado romano, pois eles não podem ter o valor de troca atribuído às personalidades autônomas. À eles, é recusado o princípio da igualdade entre sujeitos da cultura política romana. O valor de troca só aparece como suporte da igualdade jurídica, quando o escravo é substituído pela mais-valia.  Assim, é fácil de observar que a cultura política romana mantém uma dimensão mitológica por estar determinada pelo modo de produção escravista. A cultura política egípcia arcaica é estruturada mitologicamente em sua totalidade. Para ela, o mito é algo equivalente a circulação do sangue na corrente sanguínea. Nas cerimônias para a sagração do rei do Egito, há prescrições muito precisas sobre a maneira de transferir os nomes dos deuses para a pessoa do Faraó. Cada novo nome lhe traz, ao mesmo tempo, um novo atributo, uma nova força divina. Este tema joga igualmente um papel determinante na crença egípcia das almas e da imortalidade. (Cassirer. 1973: 66). Como a cultura política constitui, em certas situações, o aparelho de Estado psíquico (o aparelho psíquico do discurso do mestre que articula o Urstaat), o S1 divino é instaurado em uma cadeia de significantes produzida ex nihilo como cultura política divina. O poder divino do faraó é capaz de fazer o espectro de fantasia – ($◊a) - funcionar como causa do desejo do mestre. Trata-se de estrutura perversa? Esse é o verdadeiro e único problema? Podemos e devemos operar um reducionismo lacaniano para qualquer cultura política mitológica? A cultura política egípcia faria parte deste conjunto? A contraciência lacaniana da política não se articula pelo reducionismo psicanalítico!   
                                       
 Lacan atribuiu a Marx a descoberta do sintoma e do discurso do mestre moderno ou discurso do capitalista. No entanto, ele não incorporou em seu pensamento a lógica do espectro, do fantasma, descoberta por Marx. Nesta, a lógica do simulacro é a continuação da lógica do espectro por outros meios. Ela torna possível a definição do inconsciente político que é o inconsciente do discurso do mestre estruturado como uma linguagem específica: a linguagem do simulacro de simulação. Esta Linguagem é mais real que o próprio real. Ao dormir na superfície política, o sujeito político sonha como se estivesse em um surto psicótico.  “A vida é um sonho” é a peça do teatro barroco, de Calderón de la Barca, que faz da pedagogia antes da experiência (d’Ors: 36) o caminho para o sujeito sair do determinismo do inconsciente político sobre a superfície política. De Paulo Freyre, a pedagogia do oprimido era um artefato político para fazer a população parar de sonhar e despertar finalmente para enfrentar a política moderna in nuce, modelada pelo discurso do mestre na forma artefatual da cultura política totalitária. O inconsciente político faz o sujeito sonhar em uma experiência que é mais real que o próprio real na cultura política totalitária: o racismo articulado por tal cultura. Foucault fez a síntese da mitologia racista em uma aula magnífica: “Retomando, reciclando a forma, o alvo e a própria função do discurso sobre a luta das raças, mas deturpando-os, esse racismo se caracterizará pelo fato de que o tema da guerra histórica – com suas batalhas, suas invasões, suas pilhagens, suas vitórias e suas derrotas -  será substituído pelo tema biológico, pós-evolucionista, da luta pela vida. Não mais batalhas no sentido guerreiro, mas luta no sentido biológico: diferenciação das espécies, seleção dos mais fortes, manutenção das raças mais bem adaptadas etc. (Foucault: 94). Esta lógica instala o campo de concentração como depósito das raças inferiores. Trata-se do artefato político através do qual deve ser lida a cultura política totalitária, pois ele sobredetermina a cadeia de significantes de tal cultura.  
Para Lacan, a castração constitui a essência da posição do mestre. O mestre é castrado. O gozo está interditado para ele. Todo homem nascido de um pai tem que haver entre o pai morto e o gozo. Isto é o operador estrutural: o pai real. O pai morto   é aquele que tem o gozo sob sua guarda. É daí que parte a interdição do gozo, de onde ela precedeu. O pai real é o operador estrutural para além do mito do Édipo. Esta estrutura está além do mito e do gozo do pai original – animal despótico – como aquele que goza de todas as mulheres. Para Lacan, a castração é integrada à teoria do significante. A linguagem – mesmo a do mestre – só pode ser demanda que fracassa. O mais-gozar não se origina no êxito da demanda, mas na repetição dela. O discurso do mestre é um aparelho, que pela repetição, produz a perda de onde o mais-gozar toma corpo. Assim, a barreira no fantasma do discurso do mestre está entendida. Isso permite colocar no centro dessa lógica a fórmula todo homem é mortal, cujo suporte é o não saber sobre a morte e, ao mesmo tempo, que todo homem, nascido de um pai - sobre o qual dizem que é na medida em que está morto -, não goza daquilo que tem para gozar. O pai morto guarda o gozo (Lacan. S. 17: 112-116). 
O Faraó não nasceu de um pai real. Ele é uma produção divina. O divino põe um outro operador estrutural diferente do pai real. Trata-se de um operador estrutural divino. O faraó não está no conjunto todo homem é mortal. Ele é imortal. Como um equivalente do animal despótico, ele pode gozar de todas as mulheres. A fantasia mortífera é vista como um direito dele. Por isso, ele é a personificação do Urstaat como poder sem limite, aparelho de captura do excedente (incluindo aí o mais-gozar) e como forma divina do discurso do mestre. Neste, o mestre não é castrado. É preciso passar do mito à estrutura, mas sem jogar a criança fora da bacia com a água suja. Durkheim escreveu, “Assim quando abordamos o estudo das religiões primitivas, é com a certeza de que elas pertencem ao real e o exprime (...). Mas, debaixo do símbolo, é preciso saber atingir a realidade que ele figura e lhe dá sua significação verdadeira. (...) os mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual ou social" (Durkheim: VII). O divino é um operador estrutural da civilização arcaica que pertence ao real e é integrado no inconsciente político pela suspensão da barreira que impede o fantasma do Urstaat de funcionar no caso do poder divino do Faraó. A repetição no aparelho – discurso do mestre – produz a perda (mais-gozar) que o poder divino transforma em gozo do mestre-Faraó. Senão, a definição do Urstaat como aparelho de captura do excedente e poder sem limite (não há Lei alguma impondo limite) torna-se um impossível freudiano. A ortodoxia lacaniana opera nesta linha de raciocínio. Mas a contraciência lacaniana da política se alavanca em ser contra a ortodoxia lacaniana que é o motor da inatividade ou da inércia do campo freudiano. Por ser um ateísmo, a psicanálise está longe de questionar o que é fundamental para ela, a saber: a Lei. O discurso do analista tem como objetivo consolidar a Lei (Lacan. S. 17: 112). Entretanto, o Faraó e o Urstaat estão para além, ou aquém, do discurso do analista e do discurso do mestre laico. A relação do discurso do mestre com a religião abre as comportas para a investigação dele como uma estrutura distinta do discurso do mestre laico.
Um outro caso de máquina perversa é a cultura política do dinheiro, que funciona pelo discurso do capitalista. Benjamim Franklin é uma referência ética e ideológica de tal cultura antes da existência do modo de produção especificamente capitalista. A ética capitalista dele estava contida na máxima tempo é dinheiro. A auri sacra fames (a avidez de ouro) é tão velha como a história da espécie humana a partir da civilização arcaica. Weber acredita que a auri sacra fames tem como motor um instinto perverso (Weber: 47). Com ela, o homem é dominado pela produção do dinheiro. Em uma leitura lacaniana, como personificação do capital, o capitalista é a máquina perversa de ganhar dinheiro de um modo racional, assim como o psicótico é a máquina de fala. O capitalista é racional e irracional, simultaneamente. Weber descreve isso como a cultura capitalista. Trata-se de uma expressão neutra em relação à história. De fato, temos a cultura política racional do dinheiro, a cultura capitalista funcionado como artefato do discurso do capitalista em várias superfícies políticas, destacando-se a superfície política do mundo da vida.  A máquina de ganhar dinheiro é um artefato da cultura política capitalista, ou seja, da cultura política que é um modo de apropriação privada – privatismo – da riqueza, inclusive da riqueza pública. O privatismo é o gozo político do capitalista.                              

V
Se o inconsciente é o inconsciente do discurso, o eu e o supereu também são relativos ao discurso. No domínio do inconsciente político como inconsciente do discurso do mestre (e talvez do discurso universitário), a dialética no aparelho de Estado psíquico – entre o isso, o eu, e o supereu – pode gerar fenômenos inéditos como o povo-freudiano. O aparelho psíquico trabalha como um escultor sobre a população-mármore. Ele dirige a pulsão de morte da população para o interior dela instaurando o sentimento de culpa. Nietzsche concebeu um fenômeno equivalente na relação entre o Estado e a população: “Já devem ter adivinhado o que se passou sob o véu de tudo isto. Esta tendência para se torturar a si mesmo, esta crueldade do animal homem interiorizado, encerrado na sua individualidade, domado pelo ‘Estado’” (Nietzsche: 104). A pulsão de morte exteriorizada como violência contra o Estado é trabalhada no sentido do supereu direcioná-la para o interior do sujeito, gerando o mecanismo do sentimento de culpa. Na crise política catastrófica, as rebeliões são domadas pelo Estado, e o aparelho de Estado psíquico as transforma em matéria-prima para a emergência do sentimento de culpa na população. Toda rebelião contra o Estado é, no fundo, uma rebelião contra o fantasma do Urstaat. A população rebelada fica a meio caminho entre o fantasma do Urstaat (discurso do mestre) e a cultura política libertária. Esta quer atravessá-lo definitivamente, dissolvendo o Estado. No entanto, é preciso conceber a relação do Urstaat com a pulsão de morte como um significante universal na história da espécie humana, facticamente, a partir da civilização arcaica. Virtualmente, o fantasma do Urstaat (discurso do mestre) já está presente na sociedade primitiva, cuja política é concebida como modo de evitar a emergência do Urstaat na figura do déspota: “a sociedade primitiva nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota” (Clastres: 144; 147-148). 
Freud escreveu sobre as teorias sexuais das crianças como fabulação empírica que aproximaria o homem civilizado da sociedade primitiva (Freud. v. XXIII: 266-267). Não seria o caso de investigar, na clínica, a fabulação infantil sobre a experiência dela em relação ao discurso do mestre? Trata-se basicamente da fusão da criança com a mãe, do sujeito com o objeto (das Ding), seu déspota. A dialética senhor (mãe) versus escravo (criança) está no início da história da espécie humana e na história da criança. Ao contrário dos povos primitivos, a criança não possui meios para evitar o Urstaat (das Ding). As crianças que sobrevivem ao Urstaat não deixam de carregar consigo a sombra do fantasma do Urstaat para toda a vida, se continuam vivendo sob o domínio do discurso do mestre. Não é prudente reduzir a experiência mitológica da criança com das Ding unicamente à fabulação da criança. O mito é da ordem da narrativa e da prática, é do reino dos rituais (Cassirer. 1976: 40; Freud. XIII: 102) nos quais a criança vive em sua relação com das Ding. Se ela vive-os literalmente como a fusão com o objeto enquanto o Outro absoluto do sujeito que se trata de reencontrar, ela não tem saída a não ser mergulhar no mundo da alucinação. Para Freud, “o mundo da percepção depende desta alucinação fundamental sem a qual não haveria nenhuma atenção disponível” (Lacan. S. 7: 69). Com a criança, o discurso do mestre opera facticamente, opera com o real e constitui a percepção. Mas e se a criança tomar a relação com das Ding como metáfora de uma relação fáctica? O Outro real é o fora-do-significado. “É em função desse fora-do-significado e de uma relação patética a ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque” (Lacan. S. 7: 71). Patético em um sentido etimológico refere-se a pathos. Em estética avançada, este refere-se, talvez, a um estado afetivo e sobretudo emocional experimentado como grotesco (Souriau: 1114, 1115).  A lei fundamental – que começa a cultura – é a lei do incesto, segundo Freud. Então é preciso pensar uma intervenção da cultura na dialética do senhor versus escravo na infância desacoplada da infância da humanidade, onde o discurso do mestre não vingava. Trata-se da passagem do grotesco para o trágico. A cultura política pode vir em socorro do discurso do analista que trata a criança? Trata-se da cultura política libertária (ou liberal) que tem como objetivo criar um estado de insurreição permanente contra o fantasma do Urstaat: a fusão real com das Ding. Por que esperar pelo recalque como o único modo de enfrentar o discurso do mestre? A batalha fatal da criança não se dá antes do mito do complexo de Édipo? “O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente. É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir” (Lacan: S. 7: 87). É na ordem da cultura que a lei se exerce. A lei tem como consequência excluir o incesto fundamental, o incesto filho/mãe (Lacan: S.7: 90). Ele é o Bem Supremo, das Ding (a mãe), a ética suprema da felicidade. Isso torna impossível qualquer ética? A fusão com o objeto absoluto (Outro real) continua por outros meios na vida das sociedades. A cultura política totalitária se funda na fusão do sujeito (população) com o Urstaat (das Ding). O nazismo foi a forma sublime deste fenômeno. As culturas políticas libertária e liberal clássica constituem a vontade política de atravessar o fantasma do Urstaat - o fantasma da fusão do sujeito com o Outro fáctico (Urstaat). Trata-se do incesto absoluto, pois ele se realiza na política in nuce. A cultura política libertária usa a estética do belo como barreira para deter o sujeito diante do campo inominável do desejo radical, pois este é o campo da destruição absoluta, da destruição para além da putrefação (Lacan. S. 7: 265). Sade concebeu a anarquia como um bem que está na origem de outro bem, o Estado (Idem: 269). Mas também concebeu a travessia do Urstaat através de um estado de insurreição permanente. O âmbito do bem é o nascimento do poder. Dispor de seus bens é dispor de si mesmo, e de ter o direito de privar os outros de seus bens. O poder de privar os outros de seus bens é um laço social de onde vai surgir o outro como tal. A relação do homem com o real dos bens se organiza em relação ao poder que é o do outro de privá-lo. Trata-se do outro imaginário. A cultura política utilitária é uma solução para esse imbróglio, pois Bentham aborda a questão no nível do significante, da estrutura propriamente simbólica (Idem: 278). E qual a relação do belo com o significante bem? O belo está para além do princípio do bem, do desejo do homem de boa vontade que é o de fazer o bem. A manifestação do belo intimida, proíbe o desejo, cria uma barreira à realização da pulsão de morte. Como bem, o belo constitui a estética a serviço da cultura política utilitária que cria barreira à realização da pulsão de morte pelo Urstaat. Estamos a um passo da cultura política libertária como desejo utópico de abolir toda a infelicidade causada pelo Urstaat. Isso define o movimento anarquista mundial na atualidade, sem que ele saiba disso. No entanto, o nazismo usou o belo como instrumento de fascinação, de sugestão (mecanismo da psicose) de submissão do indivíduo. Goebbels considerava que o cinema não deveria ser uma arte usada apenas como dispositivo de distração para o prazer das massas. A aparente distração não deveria ser senão um ardil, uma astúcia, para fazer passar mais facilmente a educação, a edificação ideológica (ideologia oca de significados); a mais eficiente e melhor propaganda seria aquela que impregna a vida de maneira quase imperceptível (Richard: 19). Goebbels estava no lugar de Cacciaguida no A divina Comédia?
_ Assim falei a Cacciaguida: “Ó amado ancestral, glorioso a ponto de ascender ao Céu; assim como foi possível à mente humana entender que em um triângulo não podem estar contidos dois ângulos obtusos, assim tu, mirando aquele Ponto de onde todos os tempos podem ser devassados, consegues ver o futuro” (Dante: 358). 
A diferença entre a ficção e a realidade é a impossibilidade de Goebbels ascender ao Céu.     
                                               
Mesmo assim, Freud tinha sérias dúvidas se o discurso do analista deveria interferir no funcionamento do discurso do mestre no caso, por exemplo, de um casamento satisfatório – que atua como motor de sofrimento – ou no caso de um paciente que sofre no cargo de sua sobrevivência (Freud. V. XXIII: 264). O princípio de realidade é um componente essencial do discurso do mestre, assim como o princípio do prazer e a ética do desejo são componentes essenciais do discurso do analista.

VI
O utilitarismo fabulava que a natureza havia colocado o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. O utilitarismo reconhece a sujeição do homem a estes dois senhores e os coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da felicidade através da razão e da lei: “O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer objeto, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se reduz a mesma coisa), ou ( o que novamente equivale a mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor o mal, ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta; se essa parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da felicidade da comunidade; ao  que, em se tratando de um indivíduo particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo (Bentham: 10). Bentham é o formulador da cultura política utilitária que faz pendant com o discurso do analista? A ética do desejo não sustenta a cultura política utilitária? Não se deve reduzi-la a repartição de bens no mercado. Para Lacan, “O esforço de Bentham instaura-se na dialética da relação da linguagem com o real para situar o bem – o prazer, no caso, que veremos que ele o articula de maneira totalmente diferente de Aristóteles – do lado do real. E é no interior dessa oposição entre a ficção e a realidade que o movimento de báscula da experiência freudiana vem situar-se” (Lacan. S. 7: 22). O fictício não é idêntico ao que é enganador, mas, propriamente, o que Lacan define como simbólico. O inconsciente estruturado em função do simbólico significa que aquilo que o princípio do prazer faz o homem buscar seja o retorno de um significante, a felicidade. A “felicidade no mal” – que inclui a realização dos desejos bestiais – fariam parte da cultura política utilitária? Aí não é preciso intervir o princípio da realidade? A felicidade deve ser buscada segundo o governo da razão e da lei. Eis o princípio da realidade do utilitarismo. Por isso, ele é uma cultura política. A cultura política utilitária é o caminho do meio entre a ética tradicional e a ética do discurso do analista? Na ética de Aristóteles, o serviço dos bens é a depreciação do desejo, modéstia, temperança etc. Trata-se da disciplina da felicidade (Lacan. S 7: 351). Tal disciplina evoca um supereu despótico que é a base do funcionamento do aparelho de Estado psíquico. Aristóteles é atravessado pela dialética do discurso do mestre versus ética da cidade. Lacan só viu nele o discurso do mestre (Lacan. S. 7: 377). Na ética da cidade, a amizade é o laço social que substitui o supereu despótico na busca da felicidade. A democracia justa pode existir para além do discurso do mestre. Na ética do desejo, não se trata de abrir todas as comportas, mas de pensar uma ordem coletiva qualquer em função da satisfação dos desejos (Lacan. S. 7: 275 ). A felicidade como satisfação dos desejos – sem abrir todas as comportas – precisa de uma ordem que impeça o abrir de todas as comportas. A cultura política no mundo da vida talvez exerça tal função melhor que uma ordem coletiva que, na atualidade, é mantida pelo Estado ou pelo aparelho de Estado psíquico, excluindo as sociedades primitivas. A propósito, a disciplina de Aristóteles é uma criança comparada à ética da disciplina de Lenin - o socialismo se constrói em silêncio (Colas: 378) -, que sustenta, enquanto artefato do discurso do mestre leninista, a cultura política totalitária do socialismo realmente existente. 
A cultura política utilitária é uma superfície muito favorável ao funcionamento do discurso do analista nas biografias privadas individuais e públicas (das formações políticas). Ele não pode funcionar como um artefato na cultura política totalitária por uma posição ética. “Na profilaxia analítica contra conflitos instintuais, portanto, os únicos métodos que entram em consideração são os outros dois que mencionamos: a produção artificial de novos conflitos na transferência (conflitos a que, afinal de contas, falta o caráter de realidade e o despertar de tais conflitos na imaginação do paciente, falando-lhe sobre eles e tornando-o familiarizado com sua possibilidade” (Freud. XXIII: 265). O limite é o seguinte: “no entanto, jamais ocorre a um médico pegar uma pessoa sadia que tem possibilidade de adoecer de escarlatina e infectá-la com esta, a fim de torna-la imune à mesma (Idem: 265). O analista não pode ocupar o mesmo lugar do médico (cientista) nazista. Freud elabora sobre a ética no tratamento dos neuróticos e pensa a felicidade no mal como a realização da pulsão de morte no caso do estado de psicose coletiva. A guerra, a guerra molecular e o estado de guerra freudiano realizam a felicidade no mal. A máquina de guerra freudiana tem como motor a felicidade in nuce. Assim como a máquina de guerra sadiana, a máquina de guerra freudiana implode a ética do discurso do analista e a cultura política utilitária. Como artefato simbólico contemporâneo, tais máquinas são parte da cultura política totalitária do mundo da vida.   

Um campo importante para o entendimento da produção do contemporâneo é o campo estabelecido pela relação entre mito, estética e máquina de guerra freudiana. O nazismo mostrou toda a complexidade, a vastidão e a profundidade deste campo (Richard: XI). Este é um campo no qual a mitologia se articula à estética pelo funcionamento do discurso do mestre. Este é o motor ou causa da emergência da máquina de guerra freudiana. A investigação sobre tal campo ainda está engatinhando. 
O discurso do analista pode produzir a travessia do fantasma do Urstaat com a substituição do aparelho de Estado psíquico – como aparelho de captura do sujeito - pelo aparelho psíquico especificamente freudiano. O verbo do fantasma é captura-me. Isso significa colocar o sujeito-súdito (população) na posição de servidão voluntária. O fantasma do Urstaat é um dragão que persegue a espécie humana desde a história da civilização arcaica e mesmo antes na sociedade primitiva: “Fica-se às vezes inclinado a duvidar se os dragões dos dias primevos estão realmente extintos”. Criando uma torsão em Freud é possível pensar que, na vida biográfica privada, a travessia é possível fora do discurso do analista. “Tem-se a impressão de que não se deve ficar surpreso se, ao final, ela mostrar que a diferença entre uma pessoa que não foi analisada e o comportamento de uma pessoa após tê-lo sido não é tão radical como visamos a torná-lo, e como esperamos e sustentamos que seja” (Freud. v. XXIII: 260). O discurso do analista pode falhar, se em seu funcionamento não gerar um aparelho psíquico. É impossível discutir a causa (ou causas) disso neste breve texto. Mas a questão que nos vem à mente é outra. Trata-se de saber se é possível a travessia do fantasma fora do discurso do analista para as biografias privadas. Coletivamente, um sujeito da população (o capitalista) pode fazer tal travessia no discurso do capitalista. Parcela da população pode fazer tal travessia na cultura política libertária. No plano da biografia individual, dois casos são exemplos dessa travessia do Urstaat. Trata-se da travessia do marxismo totalitário realizada por Poulantzas e Habermas através do uso da razão, que nos remete para a concepção da alma justa de Platão. Esta só pode existir se a razão conseguir o equilíbrio harmônico com o campo dos afetos e o campo das pulsões (Platon: 1012). Mas ao contrário da ética do estoicismo, Platão não considerava que o campo dos afetos constituía–se como um campo patológico (Cassirer. 1976: 41). A obra de Poulantzas foi a primeira interpretação global do marxismo totalitário como fantasma do Urstaat. Infelizmente, este grande pensador da segunda metade do século XX escolheu o suicídio ao constatar o fracasso de sua travessia da cultura totalitária marxista. Já Habermas colocou em prática o uso público da razão procedimental como meio de travessia de tal cultura. Sua obra é um exemplo que não pode ser desconsiderada na reconstrução do campo freudiano como contraciência lacaniana da política. Poulantzas e Habermas tornaram possível a articulação do marxismo à contraciência lacaniana. Resta saber se isso pode ser o paradigma literário para uma cultura política que torne possível a travessia do Urstaat em uma escala coletiva para a população.

Um aspecto vital para a leitura da produção do contemporâneo é o estabelecimento da dialética Urstaat versus máquina de guerra freudiana. Os dois constituem um campo político que tem como lógica o amálgama da estrutura com o mito. Este como um ser que habita a estrutura. O Urstaat e a máquina de guerra freudiana constituem estruturas atravessadas pelos fluxos da pulsão de morte que é da ordem do mitológico. O Urstaat é uma condensação de pulsão de morte direcionada contra a população. Trata-se de um poder sem limite como exercício da violência contra a população.  Ele possui um aparelho de aplicação da lei que disfarça seu poder sem limite: a máquina de guerra jurídica heideggeriana (Silveira: novembro/2014). O juiz é a continuação do poder sem limite do Urstaat por outros meios, ou seja, por uma simulação de aplicação da “lei moderna”. Na produção do contemporâneo, a lei moderna existe como simulacro de simulação; ela é mais real que o próprio real. O juiz é o principal oponente da máquina de guerra freudiana que se constitui como uma vontade em qualquer superfície política, a partir da condensação da pulsão de morte, voltada para aniquilar o outro ou o grande Outro (sociedade, Estado etc.).
No século XXI, a história da espécie humana pode ser lida como a dialética Urstaat versus máquina de guerra freudiana. Estes significantes não são dragões que podem reinar no século XXI? A pulsão de morte é parte de uma mitologia do século XXI. Ela faz a política permanecer no meio do caminho entre a metafísica e a metapsicologia (Cassirer. 1976: 47). A pulsão de morte como uma categoria do Real (Roudinesco: 632) eliminaria a metafísica (o mito) na metapsicologia? A pulsão de morte como significante de uma história fáctica pode substituir a pulsão de morte como artefatual (mito) na política in nuce? Na construção da contraciência lacaniana da política, o romantismo alemão freudiano deve ser substituído globalmente pela radical ilustração lacaniana? Ou ele deve seguir a trilha de Marx cujo pensamento é um ecletismo bem temperado entre Ilustração e Romantismo? 
Lacan concebeu a emergência do discurso do mestre na história universal (Lacan. S. 18: 11). O discurso do mestre estabelece o Urstaat na história da civilização arcaica. No entanto, ele é uma produção ex nihilo dessa história universal. Lacan deixou uma trilha para o desenvolvimento da pulsão de morte na metapsicologia freudiana para além da psicologia do indivíduo e da psicologia de grupo: “porque os significantes não são uma coisa individual, não se sabe qual é e quem. Então, como vocês veem, entramos aí numa espécie de outro funcionamento original quanto à função do acaso e à dos mitos” (Lacan. S. 18: 17):
Hic Rhodus, hic salta!
Aqui está Rodes, salta aqui!
VII
Empédocles de Acragas (Gigente) - que talvez tenha nascido por volta de 495 a. C. – é um personagem importante no livro A metafísica. Ele foi cientista, profeta, mágico, filantropo, político e médico com conhecimentos de ciências naturais. Da teoria dele, Freud extraiu a ideia de que o mundo é movido pela dialética do amor versus discórdia (Freud. V. XXIII: 279-280). Freud afirma o caráter mitológico desta teoria da pulsão e, em uma recaída positivista, advoga uma tradução biológica para tal teoria. Fornecendo um certo tipo de fundamento ao princípio da discórdia, Freud acredita que faz a pulsão de destruição remontar à pulsão de morte, ao impulso que tem o que é vivo a retornar a um estado inanimado. O suporte biológico para a pulsão de morte não a inscreve como categoria do real? No entanto, as ciências naturais não trabalham com tal base conceitual. Como categoria do real lacaniano, a pulsão de morte é uma categoria biológica? Não seria preciso encontrar um laço entre alucinação e regiões do cérebro para poder sustentar que o real lacaniano tem um suporte biológico? Já foi descoberto o gens da violência?
 A tradução francesa do A metafísica estabelece que os dois princípios da teoria dos instintos de Empédocles são a amitié (amizade) e a haine (ódio). Não se trata de amor, mas de amizade! São eles os princípios contrários do movimento, em geral, e do movimento político especificamente. [Para o nosso Freud virtual, o amor transferencial é uma relação determinante na instalação do aparelho psíquico no funcionamento concreto do discurso do analista. Então, trata-se de substituir na concepção da transferência o amor pela amizade. A amizade inscreve a ética aristotélica da cidade na relação transferencial] A amizade e o ódio são as causas do Bem e do Mal, se não se partir da ideia de que o Bem é a própria causa do Bem e o Mal a causa do Mal (Aristote: 37, 39). Empédocles oscila entre uma teoria mitológica do campo da pulsão e uma filosofia da ética para explicar a política. Freud pensou em inscrever a política no biológico, sem nenhum êxito. É preciso considerar que há uma distância estrutural entre a política e o cérebro humano. Como um ser mitológico, a pulsão de morte encaixa-se na lacuna produzida por tal distância estrutural. Assim, ela torna-se um significante estruturante da política através dos conceitos como Urstaat, máquinas de guerra (freudiana, heideggeriana, sadiana) e cultura política. A cultura política é um artefato simbólico que é a continuação da política in nuce por outros meios: estéticos, retóricos políticos etc. Suas formas se definem pelo modo de condensação, ou uso, da pulsão de morte. Na cultura política totalitária, o nazismo é o artefato político que se define, por exemplo, por um uso político estético da pulsão de morte para fazer a guerra e criar o campo de concentração – racialização da política. A cultura política libertária condensa, e usa, a pulsão de morte como artefato estético para a travessia do Urstaat.

A cultura política pode fazer do direito um artefato simbólico que sustenta o uso da pulsão de morte na política e na guerra. “Atenienses: ‘Quanto à benevolência divina, esperamos que ela também não nos falte. Realmente, em nossas ações não nos estamos afastando da reverência humana diante das divindades ou do que ela aconselha no trato com as mesmas. Dos deuses nós supomos e dos homens sabemos que, por uma imposição de sua própria natureza, sempre que podem eles mandam. Em nosso caso, portanto, não impusemos esta lei nem fomos os primeiros a aplicar os seus preceitos; encontramo-la vigente e ela vigorará para sempre depois de nós (Tucídides: Livro V, cap. 105). O uso da pulsão de morte como vontade política para anexar ilegitimamente um território que pertence a seus habitantes é um equivalente do direito natural do mais forte da cultura política oligárquica. Tal cultura política parte da dicotomia original de homens divididos entre fortes e fracos, e identifica os fracos com a loucura e com a maioria. Esta mesma maioria que cria a lei escrita, lei inimiga dos fortes por natureza Trata-se de uma cultura política que usa a retórica política (Neschke: 116).  O direito do mais forte não se fundamenta no direito natural, a não ser como retórica política que objetiva se apoderar do Estado. A cultura política oligárquica usa o direito como retórica política na sua relação com o poder. Ela é a política continuada por outros meios, por meios retóricos.
VII 
No discurso do mestre, a população - no lugar da verdade e o excedente (objeto) no lugar da produção ou perda (Lacan. S. 17: 87) - expõe a questão do fantasma ($◊a). A junção do sujeito com o objeto (das Ding) – metonimicamente representado pelo objeto a – remete para o Urstaat, o aparelho de captura do excedente articulado pela lógica do significante. A junção significa o fantasma do Urstaat da população (escrava): capture-me como excedente (sobretrabalho). No lugar da verdade, a população suspende a barreira (Δ) existente entre ($Δa), entre o sujeito e o objeto. A homologia entre a mais-valia e o mais-gozar já remete para o funcionamento específico do discurso do capitalista. Aqui é preciso pôr o S1 (capital) no lugar da verdade e a população (objeto) no lugar da produção como trabalho que produz a mais-valia. Tal discurso troca o escravo pela mais-valia. O capital e o trabalho continuam no espaço de baixo do discurso do capitalista a lógica do significante como aparelho de captura do excedente (S1◊a). O S1 faz a punção (◊) no objeto (S1◊a).

No discurso do senhor arcaico, o senhor (S1) é o significante-mestre que é barrado e, pela metamorfose, vira $ (sujeito) no lugar da verdade. Este sujeito precisa do reconhecimento do escravo e do trabalho do escravo. Trata-se da junção impossível entre o senhor e o escravo que remeteria para o significante senhor absoluto: a morte? (Hegel. 1966; 119).  Esta é a verdade do senhor arcaico na dialética senhor versus escravo? Para o senhor, a verdade é o reconhecimento pelo escravo de que o senhor é superior e por isso tem o direito de usufruir da mais-valia e do mais-gozar que compõe toda a riqueza da sociedade escravocrata? O Urstaat aparece como aparelho de captura do sobretrabalho da população escrava cuja fantasia é designada pelo verbo capturar. O sujeito do inconsciente político – o sujeito que é o efeito da experiência de produção do fantasma – é um modo de gozar, é a estrutura erigida em torno do mais-gozar. O verbo capturar revela seja o fantasma do senhor arcaico, seja o fantasma do escravo: gozo em capturar o excedente; gozo em ser capturado como excedente. No discurso do senhor arcaico, o Urstaat encarna o significante senhor absoluto como poder sem limite sobre a população. Isto é o que faz dela escravo no sentido especificamente político. 
A intrusão da política significa que se deve reconhecer que não há discurso que não seja gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade. No discurso do mestre arcaico, Hegel articula que a verdade é entregue ao senhor pelo trabalho do escravo. Ele observou que tal discurso repousa na substituição do senhor pelo Estado, através do longo caminho da cultura, na fenomenologia do espírito (Lacan. S. 17: 74). Marx mostrou que este Estado é o Urstaat, um artefato do discurso do mestre arcaico que não depende do longo caminho da cultura. Para Hegel, o Estado é a forma que realiza a existência das determinações abstratas da natureza do espírito. O início da história universal começa com a liberdade que consiste somente no saber e querer objetos universais, substanciais, como o direito e a lei, produzindo uma realidade que lhes é conforme: o Estado (Hegel. 1995: 57). Para este grande pensador alemão, o Estado só existe articulado pelo Direito. Tal ideia é o paradigma da cultura política do direito e também de um pensador da esquerda ilustrada como Agamben. Ao contrário, Marx pensa o Estado como aparelho de captura do excedente (Deleuze: 532). Trata-se de pensá-lo também como poder sem limite articulado pelo discurso do mestre arcaico. Trata-se de um artefato simbólico do discurso do mestre arcaico anterior ao longo trabalho da cultura ocidental. 
O Estado arcaico (Urstaat), a guerra etc. surgem como parte da cadeia de significantes produzida ex nihilo. Tal cadeia será desenvolvida com o tempo, sendo acrescentado nela significantes como capital, direito, cultura política e política in nuce. Aqui mergulhamos na antiguidade greco-romana. Nesta época, O Urstaat continua funcionando como aparelho de captura do sobretrabalho escravo no modo de produção escravista. Em Marx, a questão elaborada por Hegel sobre o saber da população no lugar do trabalho recebe uma resposta definitiva no discurso do capitalista. O operário não produz saber no modo de produção capitalista. O saber ou ciência é algo exterior ao operário. A ciência é fundamental para a produção da mais-valia relativa e, portanto, para a instalação do modo de produção especificamente capitalista, e para a subsunção real do trabalho ao capital. A divisão do trabalho capitalista – trabalho manual /trabalho intelectual – é uma estrutura que suplementa a lógica da subsunção do trabalho ao capital. A complexidade do discurso do mestre moderno pode ser observada por sua articulação da política a partir da separação entre trabalho manual/intelectual. A obra de Gramsci põe a hegemonia no lugar do discurso do mestre para pensar a política moderna, seguindo o pensamento de Hegel. O ocaso da política moderna pode ser concebido pela intrusão do discurso do mestre na política do século XXI. Ele torna-se soberano na política ao subsumir facticamente a hegemonia. O papel e a função do intelectual tornam-se secundários na elaboração da política. Como artefato do discurso do mestre, a cultura política dominante no mundo da vida toma o lugar do intelectual hegemônico. Por exemplo, o aparelho de comunicação (televisão, internet) deve ser analisado como um artefato que condensa a dialética das culturas políticas no mundo da vida. Ele funciona como uma bricolagem de culturas políticas. 
Sobre o gozo, o gozo do capitalista é o da apropriação privada da riqueza. Trata-se do gozo do prazer (Hegel. 1966: 215). Trata-se de um gozo homólogo ao gozo oligárquico (discurso do mestre) da antiguidade. Neste sentido, o discurso do capitalista é a repetição do discurso do mestre de um modo diferente e lúdico. Quanto a função do a como mais-gozar, o capitalista dispõe do corpo do outro sem ter nenhum poder sobre o que acontece com seu gozo (Lacan. S. 16: 358). Em Lacan, a ausência de conceitos como cultura política oligárquica e cultura política do dinheiro bloqueiam a percepção do gozo do corpo do outro seja no discurso do mestre, seja no discurso do capitalista. Tratar-se-ia do gozo como objeto político. Na cultura política, o representante político do capitalista – a personificação do capital na política – altera a função do a como mais-gozar. O capitalista político dispõe do corpo político do outro (eleitor) e sabe o que acontece com seu gozo ao se apropriar privadamente da política (privatismo político). O grau e intensidade do privatismo pode definir o tipo de forma de governo na democracia representativa. O privatismo absoluto instaura a democracia despótica, por exemplo. Nesta superfície política, pode ocorrer a homologia entre mais-valia (Mehwert) e mais-gozar (plus-de-jouir ou Mehrlust). Estes constituem a riqueza em relação ao gozo hegeliano e ao gozo lacaniano. 
O discurso do capitalista se inscreve na política transformando o eleitor em súdito (escravo). Por que o significante cidadania desapareceu da linguagem política do século XXI? A dialética senhor/ escravo no modo de produção capitalista deixa de ter uma interpretação economicista, quando ela é lida pela sua tradução na política. Tal dialética perde também sua canga idealista – uma dialética somente das formas de consciência – para se transformar em uma dialética materialista da política. O ponto de partida é o S1 (capital) no lugar da verdade. No discurso do capitalista, o Urstaat desaparece como aparelho de captura do excedente, vindo o capital a ocupar tal lugar. O Capital de Marx concebe tal fenômeno no capitalismo liberal do século XIX. No século XX, o capitalismo monopolista de Estado reintroduz o Estado como aparelho de captura da mais-valia. A crise do capitalismo monopolista de Estado permitiu ao globalismo neoliberal se constituir como uma vontade de abolir o Estado como aparelho de captura da mais-valia. Tal capitalismo acreditou na possibilidade definitiva da travessia do fantasma do Urstaat. Trata-se de uma época na qual os intelectuais passaram a elaborar também sobre a possibilidade do fim do capitalismo (Altvater: 218). O capital quer abolir o Estado e os marxistas querem abolir o capitalismo pelo imaginário. A cultura política do dinheiro sonha com a utopia do fim do Estado e o marxismo economicista com o fim do capitalismo sem necessidade de uma revolução social. Trata-se do marxismo como cultura política totalitária em uma era na qual a luta de classes não ocupa mais o centro da política mundial. A classe operária tornou-se escrava real do capital! Trata-se da paz do discurso do mestre moderno (discurso do capitalista) que sustenta a ideia de escravidão no século XXI. O aparelho de Estado psíquico do discurso do capitalista articula o corpo do escravo (população) como perinde ac cadaver, tal como um cadáver.
O que fazer?   
                     Quem costuma vir de onde eu sou
Às vezes não tem motivos pra seguir
Então levanta e anda, vai, levanta e anda
Vai, levanta e anda
Mas eu sei que vai, que o sonho te traz
Coisas que te faz prosseguir
Vai, levanta e anda, vai, levanta e anda
Vai, levanta e anda, vai, levanta e anda


(Emicida)

BIBLIOGRAFIA
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Emicida, Levanta e Anda (part. Rael da Rima)/

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