janeiro 31, 2015

‘Eu, o coronel em mim’ - Documentário (Observatório da Imprensa)

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

‘Eu, o coronel em mim’

 

Documentário produzido pela organização Artigo 19 aborda as histórias de pessoas que sofreram processos por crimes contra a honra. Entre elas está a do jornalista Cristian Góes, condenado a 7 meses e 16 dias de prisão pelo crime de injúria por conta de uma crônica ficcional que escreveu.

"O mesmo ódio vinte anos depois", por Léa Maria Aarão Reis

PICICA: "O ódio apontado no filme fermentou escancarado, à vista de toda uma sociedade envenenada durante pelo menos os últimos 20 anos até um trágico desenlace"

O mesmo ódio vinte anos depois

O ódio apontado no filme fermentou escancarado, à vista de toda uma sociedade envenenada durante pelo menos os últimos 20 anos até um trágico desenlace.



Léa Maria Aarão Reis Divulgação


Foi uma surpresa e causou furor, quando foi lançado, em 1995, o filme francês "O Ódio" (La Haine), de Mathieu Kassovitz, então um bom ator de apenas 28 anos, filho de pais que sempre trabalharam no universo do cinema; ele judeu húngaro e ela francesa. O Ódio ganhou a Palma de Melhor Diretor, em Cannes, e o prestigioso Premio Cesar daquele ano, de produção e montagem (clique aqui para ver o filme na íntegra, legendado). A partir dali Kassovitz trabalhou com os americanos, não gostou do seu modo desrespeitoso de produção e repudiou a comparação feita pela crítica francesa, na ocasião, saudando-o como herdeiro de François Truffaut.

Resolveu se dedicar apenas à carreira de (bom) ator, que floresceu e amadureceu, o mesmo ocorrendo com a do seu amigo e companheiro, Vincent Cassel - que trabalhou em La Haine. Dez anos depois, em novembro de 2005, motins se espalharam pelos subúrbios de Paris (as banlieues) e ocuparam, durante semanas, manchetes da mídia europeia após a morte de dois adolescentes de ascendência norteafricana, acidentalmente eletrocutados quando, com medo, se escondiam dos agentes policiais, durante uma blitz, para evitar verificações de identidade. A tragédia desencadeou uma gigantesca reação violenta nas ruas, escolas, delegacias e centros de convivência dos bairros da periferia de Paris e também um grande debate: os rapazes, assim como outros, detidos nas barreiras policiais daquela noite eram ou não vítimas de discriminação racial? Na ocasião, a resposta agressiva do então Ministro do Interior da França, Nicolas Sarkozy, foi escandalosa. Sarkozy xingou os manifestantes de "ralé que deve ser limpa das banlieues com uma mangueira de incêndio.”

Kassovitz, dez anos antes, tinha sido um dos primeiros a fazer filmes de uma safra (não exibida no Brasil, exceção de La Haine) que apontavam as graves tensões fermentadas entre a polícia e a população dos subúrbios. Indignado, ele respondeu a Sarkozy:  “Suas ideias revelam inexperiência na política e nas relações humanas; e iluminam os aspectos demagógicas e egocêntricos de um homem franzino que quer ser Napoleão."

Sarkozy não chegou a Napoleão. Mas foi um presidente da França que gostaria, sem dúvida, de ter feito uma razia definitiva em várias regiões da periferia de Paris, algumas daquelas que o canal de TV americano (republicano) Fox News listou, este ano, depois do massacre de Charlie Hebdo, para os destacados turistas americanos como no go zones: bairros habitados pelos imigrantes pobres, árabes e africanos e seus jovens filhos... franceses, aos quais não se deve visitar.

O ódio, portanto, fermentou escancarado, à vista de toda uma sociedade envenenada durante pelo menos os últimos vinte anos até o trágico desenlace de 7 de janeiro.

Hoje, com o país traumatizado, Kassovitz entrou no grande debate nacional, ainda em curso, sobre a integração do islamismo na Europa e como lidar com o extremismo religioso. Em entrevista à Rádio France Inter ele anunciou que fará O Ódio 2.  Sua crônica violenta das minorias sociais esquecidas pelo governo e agredidas pela polícia terá uma sequência, duas décadas depois. Embora no passado tenha falado sobre sua intenção de parar de fazer filmes,  ele agora mudou de ideia em vista dos atentados. E propõe aspectos interessantes no meio da consternação.

"Eu não acredito que este seja um país antissemita nem islamofóbico. Eu não acho que sejamos fundamentalmente racistas. Eu acho que somos prisioneiros das nossas políticas e da nossa mídia que nos condicionam a pensar que somos assim. Nós  somos nossos próprios inimigos."

Não foi à toa que o filme ganhou o Cesar de Melhor Montagem em 95. Ela é excelente, com destaque para a sequência do prólogo filmado  agilmente em vídeo e ao som de Bob Marley apresentando as manifestações de protesto dos subúrbios, nas ruas, as depredações e a repressão violenta da tropa de choque policial. Esse tom de cinema-verdade permanece até o fim.

Os protagonistas de O Ódio são três jovens da banlieu: um negro, um judeu e um árabe. Hubert, Vinz e Saïd. Sua rotina é paralisada pela pobreza, pelo tédio, pela falta de perspectivas de inserção e ascensão social e econômica e movida pelo consumo e tráfico de drogas, furtos ocasionais; sem qualquer estímulo à educação e ao trabalho. Um companheiro deles, preso, é quem aproveita o tempo para estudar e tentar o acesso à universidade.

“Vivemos numa ratoeira. Mas o que fazemos para mudar as coisas?” indaga um deles. Para a equipe de TV fazendo uma reportagem na área: ”Isto aqui não é um zoo que se visita de carro!” Desafiadores, para os agentes policiais: ”A polícia está aqui para proteger; não para bater. Quem nos protege de vocês?”.

O Ódio se divide em duas partes. Um dia e uma noite  serão decisivas na vida dos rapazes. Na primeira, concentra-se no retrato da existência dos moços nas praças desoladas dos conjuntos habitacionais populares que soa como um prenúncio do que viria se acumulando e aconteceria de violência radical nas duas décadas seguintes, nos subúrbios cada vez mais arruinados, depredados e metamorfoseados em guetos.

Na segunda parte, a noite vivida na Paris burguesa dos ‘brancos’ bem pensantes, a cidade dos vernissages, dos centros comerciais e dos cartazes de rua onde se lê “o mundo é seu”. A cidade onde a polícia é bem educada nas esquinas - mas violenta nas delegacias onde se tortura e onde um policial ensina novas técnicas a um colega: “Estas aqui vêm de longe, da América do Sul,” ele mostra ao companheiro.

“A  situação nas periferias parisienses,” diz Kassovitz, “é esta: os policiais odeiam os garotos que por sua vez os odeiam; e isto nunca acaba”. A metáfora sobre “uma sociedade que se encontra em queda livre” e resume o insustentável estado de coisas está na abertura do seu filme. A voz deformada, em off, de Cassel comenta: “É como quem está caindo de grande altura e vai dizendo para si mesma: ‘até agora está tudo bem’; o problema é a aterrisagem.”

A observar: no último dia 8 de janeiro, um menino muçulmano foi detido e interrogado pela polícia de Nice por se negar a fazer um minuto de silêncio, na escola, e a participar de um ato de homenagem às vítimas do ataque aos jornalistas do Charlie Hebdo. Durante um debate na sala de aula o garoto disse que estava do lado dos terroristas. Convocados pelo diretor da escola, ele e seu pai foram denunciados em uma delegacia local treze dias depois por “apologia ao terrorismo.”.

Também agora, em janeiro, foi retirada de cartaz de um cinema da pequena cidade de Villiers-sur-Marne, em Île-de-France, a 15 quilômetros de Paris, a produção Timbuctu indicada inclusive para Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano. A prefeitura, (de direita) em seu comunicado oficial, justifica a medida porque Timbuctu faz – novamente - “apologia ao terrorismo.”

Este filme de Abderrahmani Sissako, uma co-produção com a Mauritânia, gira em torno de um homem preso e torturado por um grupo de fanáticos religiosos. Já vendeu 500 mil ingressos em todo país. Quem viu diz que é belíssimo.

Como se pode ver, o ódio, esse sentimento negativo e gelado, mais ainda do que sua prima-irmã - a vingança - a qual, segundo o clichê, é um prato a ser comido frio, é fatal na hora da chegada ao chão.

Créditos da foto: Divulgação

Fonte: Carta Maior

"Especial: sinais de outra esquerda no Syriza", por Paul Mason

PICICA: "Como um partido não-convencional ousou desapegar-se da retórica e experimentar. A escuta política. Os “clubes de solidariedade”. O carisma de Tsipras"

Especial: sinais de outra esquerda no Syriza


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Como um partido não-convencional ousou desapegar-se da retórica e experimentar. A escuta política. Os “clubes de solidariedade”. O carisma de Tsipras

Por Paul Mason | Tradução: Inês Castilho 

A vitória do Syriza sacudiu a esquerda na Europa – atingindo até mesmo os social-democratas moderados, que se debatiam em busca de idéias e inspiração desde a crise de 2008. Agora, há em todo canto conversas sobre “fazer um Syriza” – e na Espanha, onde o partido de esquerda Podemos está obtendo 25% nas pesquisas, mais do que conversa.

Mas o percurso do Syriza até tornar-se o primeiro governo europeu de extrema esquerda nos tempos modernos não foi nem fácil nem inevitável. Nos últimos 22 dias, participei de uma equipe de documentaristas gregos que acompanhou os ativistas e líderes em campanha, para ver como eles conseguiram vencer. Pude vê-los oferecendo novas esperanças a agricultores no limiar da pobreza, e angariar víveres para sua rede de bancos de alimentos. Vi como conquistaram comunistas da velha guarda, no sindicato dos estivadores, que sofriam por ver seu local de trabalho vendido aos chineses; e como apresentaram, em contraposição ao establishment político e à elite corrupta, uma alternativa jovem e contemporânea. Vi seu líder, Alexis Tsipras, em ação em seu escritório particular, em momentos críticos.

Tsipras é tão carismático que nem precisa de uma equipe de imprensa de classe mundial. Mas quando o entrevistei, na primeira semana de campanha, ficou claro que o Syriza não tem escassez de assessores de imagem. “Desculpe, mas tenho de vetar isso”, diz o secretário de imprensa Danai Badogianni, bem quando Tsipras parece convencido a falar em inglês para a câmera. “Caso contrário, vai abrir um precedente.”


A campanha de Tsipras começou a partir de uma atuação sólida na oposição parlamentar. Em 3 de janeiro, o dia em que ele lotou um estádio com cinco mil membros do partido, o núcleo interno viu-o levar a esquerda de seu partido a se resignar e retirar as objeções à sua escolha de candidatos ao parlamento. Tsipras transformou tanto o partido como seu funcionamento; o comitê central, em sua sede surrada, tornou-se menos importante do que a equipe política do candidato.

De perto, ele fala um inglês perfeito e tem uma risada contagiante. Há alguns parlamentares do Syriza craques em serem contidos e discretos, nas conversas em off, mas Tsipras não é um deles. Conversamos francamente sobre informações controversas que sua equipe econômica deu aos mercados financeiros, e sobre a tentativa de suborno escandalosa que, segundo ele, torpedeou a estratégia eleitoral da direita. Ele posa, sem vacilar, para selfies com as jovens gregas com quem estou filmando, sabendo que as fotos estarão no Facebook em minutos.

Alexis Tsipras, leader of Greek party "SYRIZA" speaks in Thessaloniki
Tsipras com apoiadores de Thessaloniki

Apesar de convocar não menos que quarto professores de economia de esquerda para sua equipe ministerial, Tsipras parece ter, ele próprio, a mais clara compreensão da economia política, para seu próximo confronto com o Banco Central Europeu. Os anúncios decisivos, quando vierem, serão feitos por ele.

Mas, além do profissionalismo e disciplina, Tsipras definiu um ritmo de campanha avassalador. Sua margem de vitória, nas pesquisas em janeiro, era de 2 pontos percentuais. Com todos os canais da TV grega contra ele, e a maioria dos jornais, a direita esperava retomar a liderança. Mas, ao contrário, foi o Syriza que disparou.

O interior em revolta e a escuta política

No sol fraco de janeiro, as montanhas ao longo do Golfo de Corinto estão cobertas de neve. Espalhadas ao longo das encostas estão aldeias conhecidas como “castelos” políticos, normalmente tão apegadas a um ou outro dos principais partidos – Pasok [ex-social-democrata] e Nova Democracia [centro-direita] – que você pode orientar-se, em época de eleição, seguindo os cartazes. Mas esta é, hoje, uma terra conturbada; dois terços dos plantadores de vinhas e pomares de limão estão tecnicamente falidos. Foram forçados a hipotecar suas terras, os bancos querem reaver seus empréstimos e o índice de suicídios avança, nestas tranquilas cidades agrícolas.

Giannis Tsogkas, um plantador de uvas de 56 anos de Assos, nos diz: “[O governo] nos empurrou para o acordo com o FMI e tudo que eles fazem é obedecer os conservadores. Os pequenos vão morrer. Continuamos ouvindo sobre gente se suicidando. De modo que tentamos encontrar alguém na esquerda que nos proteja. E encontramos o Syriza.”

Ao cair da noite, a taverna próxima a Psari está cheia de idosos e crianças – a maioria dos jovens adultos se foi. Os rostos sofridos dos agricultores na miséria observam com cuidado um homem do Syriza que faz um discurso em estilo bolchevique: “Por que o FMI quer nos destruir? Será que é porque o sol brilha aqui? Será que é porque somos um povo hospitaleiro? Eles odeiam a vida do sul da Europa? ”

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“No Syriza, nós encontramos alguém para nos proteger”, diz o plantador de uva Giannis Tsogkas.

Mas, diz o candidato à eleição Theofanis Kourembes, não foi a retórica que tornou vermelhas cidades como esta. “A gente vai e ajuda as pessoas. Escutamos quando nos dizem alguma coisa. Quando pedem ajuda, estamos aqui. Você nunca vê o Pasok ou a Nova Democracia.”

São pequenos encontros como este, a quilômetros das principais cidades, que ajudaram a transformar o Syriza, de um partido com 4% dos votos há 10 anos, num outro, que liderava com 32% das preferências, na última semana de campanha eleitoral.

“Vocês jornalistas vieram de longe até aqui para nos entrevistar”, diz um fazendeiro. “O Syriza é o único partido que fez a mesma coisa. Eles vieram e conversaram conosco. Se quiséssemos falar com os principais partidos, como os encontraríamos?”

O campo, uma paisagem árida de galhos e campos transformados, é solo fértil para a mensagem vencedora do Syriza. Os agricultores sofreram muito com a “austeridade”: ela significa impostos mais altos e menos subsídios. Mas a corrupção é também uma questão importante. Em Assos, Tsogkas nos conta como os comerciantes que compram as uvas regularmente desaparecem sem pagar. “Eles não nos dão recibos, e a lei os protege. Desaparecem, pedem falência e ficamos sem nada. Mas temos de pagar por medicamentos, salário de empregados, juros de empréstimos, eletricidade, tudo isso. Estamos esgotados”, ele suspira, “acabou.”

O sistema político grego era tão incompetente, corrupto e lubrificado pelo que eles chamam aqui de “dinheiro sujo” que, quando o dinheiro acabou, os alicerces que o sustentavam entraram em colapso.

Embora o programa econômico do Syriza seja limitado pelos 319 bilhões de euros que a Grécia deve ao resto da Europa, lutar contra a oligarquia não custa nada. Tsipras me diz: “Iniciaremos uma nova era política. Vamos fazer uma mudança maciça na governança do Estado. Não temos responsabilidade pelo estado de clientelismo criado pelos partidos que governaram o país até agora. Precisamos de um Estado que funcione e se coloque ao lado dos cidadãos. Precisamos acabar com essa farra de sonegação e evasão fiscal.”

Por toda a Grécia, o Syriza organizou bancos de alimentos, conhecidos como Clubes da Solidariedade. Acompanho os ativistas até um mercado de rua em Atenas. Usam lenços laranja e, educadamente mas com firmeza, argumentam com os agricultores que um saco de batatas ou laranjas para os pobres é seu dever social. Em meia hora, os carrinhos estão cheios de comida.

O organizador me diz: “Isso é o oposto de caridade. Estamos dando suporte a 120 famílias nesta área, e muito do trabalho que fazemos é lidar com isolamento, saúde mental e vergonha.” Você não pode agir mais profundamente na micropolítica do que quando se senta num quarto pequeno e convence as pessoas a não pensar em suicídio.  Não tem volta, a confiança construída é difícil de destruir.
E na semana final, quando as pesquisas dão ao Syriza sólidos seis pontos de liderança, torna-se claro o que está levando à vitória. Ainda que o programa do partido aponte para algo como uma democracia econômica e social de esquerda, ele está agindo de modo oposto à prática dos social-democratas em tempo de eleição. Faz promessas claras e duras, sobre pegar pesado com os ricos. Um parlamentar sênior prometeu publicamente “destruir a oligarquia” – taxar os donos de navios e patrões das construtoras, e impor regulação básica e moderna nos canais de TV privada que a oligarquia possui — os quais, hoje, não têm sequer que registrar, ou pagar pelo espectro de rádio que usam.

“A esperança começa hoje”, é o mantra de Tsipras. Isso se traduz numa nova atmosfera nos cafés e nas mesas de jantar das famílias: não estamos mais com medo.

O centro político se autodestrói

No momento do último comício eleitoral do Syriza, a mídia global acordou para a possibilidade de uma derrota. Para quem olha de fora, as bandeiras vermelhas e a multidão cantando Bandiera Rossa, o hino comunista italiano, lembram a velha esquerda – mas todos na multidão sabem que o partido está se dirigindo à direção oposta. Ele não se limitará a confrontar a Europa, na redução da dívida – exige um novo acordo. Está determinado a anular as políticas de “austeridade”. Isso, dizem os sagazes economistas amontoados nos bastidores do comício, joga o problema para o chefe Banco Central Europeu, Mario Draghi. Ele pode puxar o gatilho de um colapso bancário e de uma crise que force a Grécia a sair do euro — mas o Syriza não fará isso.

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Pichações de protesto por toda cidade. “Cancelem a dívida. FMI volte para a casa”.

Enquanto Tsipras entusiasma a multidão, Pablo Iglesias, o jornalista que levou o novo partido de esquerda espanhol Podemos a uma posição de 25% nas pesquisas, encolhe os ombros e balança como um boxeador prestes a entrar no ringue. Ele ensaia o que vai dizer e, em seguida, dá uma corrida para subir os degraus, acompanhado por uma música de Leonard Cohen, para juntar-se ao Tsipras. Ele grita, em inglês: “Primeiro vamos tomar Manhattan; em seguida, tomamos Berlim.” Em outras palavras, o FMI e o BCE terão de enfrentar um oponente determinado. Os quadros do Syriza que cercam os dois homens sabem como vai ser pesada a pressão a partir de agora.

Rena Dourou, que conheci como uma ativista esfarrapada no acampamento Occupy da Praça Syntagma de Atenas, quatro anos atrás, não pode conter seu sorriso conforme balança a mão nas ruas, abarrotadas de apoiadores: “Ninguém nos ouviu durante anos”, diz ela. “Agora todo mundo está ouvindo. E não se trata apenas da Grécia. Trata-se da Europa, e especialmente a jovem.”
Dourou está em suas primeiras semanas como prefeita eleita de Attica, a maior região da Grécia. Está descobrindo na real o que significa tentar limpar o Estado grego. Agora penteada e vestida com um terninho como uma política convencional, não consegue conter o nervosismo. Há quatro anos, conforme nos esquivávamos do gás lacrimogêneo, ela me disse: “A Europa precisa de um Chirac, ou um Schröder, ou mesmo alguém como Kirchner na Argentina. Algum tipo de líder convencional que pare com essa loucura de austeridade.” Eu brinquei: “Provavelmente serão vocês.” Hoje, ela sabe que não é brincadeira. Conforme todo o centro político europeu aquiesceu em um programa de “austeridade” que empurrou o continente para a deflação, apenas um partido de ex-trotsquistas, ecoguerreiros e ativistas Occupy tomou esse espaço.

Na noite da eleição, no ultimo andar da sede do Syriza, onde está sentada a equipe de Tsipras, o nervosismo dá lugar a um alívio estonteante, à medida em que os resultados vão saindo. As perspectivas de obter maioria no Parlamento sem coligações estão por um fio mas, minutos depois de encerrada a apuração, já ficara claro que eles venceram. Tsipras chega, radiante. Ele abraça uma mulher baixinha de meia idade de sua equipe, chamando-a de “meu pequeno porquinho”. Seus secretários estão em lágrimas. “Por que vocês estão chorando?”, brinca. “Quando perdemos em 2012, vocês estavam celebrando; e agora, que vencemos, vocês choram!”

O futuro ministro do interior do Syriza liga para os chefes do exército e da polícia. “Nós confiamos em vocês”, é a essência da mensagem. É um grande ato de fé, já que as forças militares e policiais da Grécia foram treinadas, desde a guerra fria, para suprimir a extrema esquerda agora — inclusive com aulas de “educação política”, aos oficiais, sobre os perigos do marxismo.

Nos anos que se seguiram à queda da junta militar, em 1974, a oligarquia bipartidária tolerou a esquerda, mas assegurou-se de que não houvesse chance de ela chegar ao poder. Isso, em retrospectiva, criou uma consciência de esquerda ampla, mas dormente. Tsipras está rodeado de quadros partidários que lutaram na rebelião estudantil que derrubou a junta, mas a geração de seus pais sofreu tortura e prisão durante e depois da guerra civil. Excluida do poder, a esquerda construir uma contracultura de canções rebeldes, música folclória, culto a Che Guevara e poderosas centrais sindicais de trabalhadores manuais, como os estivadores. Isso é chave para entender o que é replicável sobre o Syriza, e o que não é. O partido emergiu da cisão do eurocomunismo com Moscou nos anos 1970, mas enxertou uma cultura de esquerda soft, e conquistou a lealdade de muita gente jovem, cuja vida gira em torno de trabalho precário e sem qualificação, e que faz a mágica de sobreviver com salários de 400 euros por mês.

Tsipras transformou o Syriza de uma aliança frouxa em um partido que é a expressão, por excelência, dos valores deste vasto setor de esquerda do eleitorado grego. Bastou que o partido natural que a representava — o Pasok — destruisse a si mesmo.

Na última semana de campanha, os gregos de esquerda assistiram ao desabamento das paredes invisíveis à sua volta. As conversas com os vizinhos de direita e os colegas de trabalho não politizados eram dominados por uma palavra – Tsipras. E nos últimos dias, apenas “ele”. Assim como o boca-a-boca incessante, os bancos de alimentos, a identidade visual elegante, o que levou o Syriza ao poder foi, basicamente, a autodestruição do centro. E isso, por sua vez, deveu-se ao trabalho da União Europeia e do FMI.

Um partido da juventude e dos que rejeitam o medo

Na cidade de Assos, quando os votos foram contados, verificou-se que 1.529 dos 4.000 habitantes votaram Syriza (38%). Os conservadores, que controlaram a cidade por gerações, tiveram apenas 29%, com o partido neonazista Golden Dawn chegando a 7% – uma réplica quase exata do resultado nacional. O mapa eleitoral mostra que, fora a velha direita do interior da Macedônia e da Península do Peloponeso do Sul, a Grécia profunda tornou-se vermelha.

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Mulher levando porção de comida da cozinha comunitária em Atenas.

Kourembes, que é agora parlamentar do Syriza para Assos, diz: “Simplesmente, desta vez, o povo começou a pensar de outra maneira. Eles se deram conta de que não há saída com o grupo atual de políticos. Tomaram consciência de que, para manter-se à tona, tinham de fazer alguma coisa diferente.”

O Syriza não empregou nenhuma “tática matadora” na campanha eleitoral. Mas teve qualidades definitivas: jovialidade, plausibilidade e normalidade. Muitos de seus candidatos são jovens e elegantes; eles vivem e se comportam como gente de vinte, trinta e poucos anos. No comício de lançamento do ministro dos transportes conservador Miltiadis Varvitsiotis, os contrastes eram óbvios. Como convém a um sistema que permite aos proprietários de navios não pagar nenhum imposto sobre os lucros no exterior, a multidão aqui era idosa, de aparência requintada e desavergonhadamente rica.

Embora o próprio ministro seja parte de uma geração tecnocrática que acena ao conservadorismo moderno, é impossível ser contemporâneo quando rodeado por um aparato construído na guerra fria, e dependente do apoio de bilionários. Ao mostrar ser gente normal, evitar declarações tresloucadas de parlamentares individuais e projetar e calma, em oposição à campanha de medo da direita, o pessoal de Syriza ganhou.

Em Atenas, logo depois de fechadas as urnas, Spiros Rapanakiso, candidato do Syriza  inclina-se, exausto, contra as persianas de uma loja. Ele passou o dia em sua zona eleitoral, a comunidade do porto de Keratsini, em um Hyundai maltratado, assobiando a International pra ganhar coragem. Fica claro, quando falamos com os eleitores, que até mesmo conservadores tradicionais votaram no Syriza. Quando se dá conta de que, em vez de um repórter júnior no jornal do partido, é agora um deputado, ele murmura: “O povo grego escreveu a história e estou contente de fazer parte dela. Eu de fato não posso descrever como me sinto. Temos um grande trabalho pela frente. Amanhã vamos criar a Grécia de novo.”

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

janeiro 30, 2015

Um Apólogo - Humberto Mauro, 1939 - Cinema Nacional

PICICA: Ao assistir esta pequena obra de Humberto Mauro, lembrei-me do diálogo que tive com o crítico literário Henrique Wagner, colunista do jornal A Tarde, da Bahia, nestas longas férias em Salvador. Para o crítico é surpreendente que o escritor e dramaturgo Márcio Souza (do qual não conhece apenas o teatro indígena escrito pelo autor amazonense) ainda não esteja na Academia Brasileira de Letras, fundada por Machado de Assis. Ali, autores menores, com baixíssima produção literária, ingressaram sem os devidos méritos, mediante manobras tão bem descritas em "Farda, Fardão, Camisola de Dormir", do escritor baiano Jorge Amado.


Um Apólogo
Direção: Humberto Mauro
Ano: 1939

"O fantasma da adolescência no filme "Divergente"" (CINEGNOSE)

PICICA: "O fantasma da adolescência assombra o Capitalismo: como estender o período da vida que conhecemos como “juventude”, com toda a sua ansiedade e revolta, com a finalidade de adiar cada vez mais a entrada do jovem no mercado de trabalho? Filmes como "Divergente" (Divergent, 2014) é um exemplo da solução desse problema e, ao mesmo tempo, a descoberta de uma inesgotável fonte de lucros. Em cada década a indústria do entretenimento explorou essa “adolescência estendida”: rebeldes sem causa, punks, darks, góticos, emos. E agora, rebeldes “teens distópicos” de filmes como “Jogos Vorazes” ou “Ender’s Games”. Baseado em mais um indefectível romance infanto-juvenil, o filme “Divergente” traz a ambígua mensagem desses novos tradicionalistas de início de século: revoltem-se, sejam audaciosos, mas se abstenham de drogas e sexo e na segunda-feira voltem para a escola.  

Divergente (Divergent, 2014) é mais um filme que se associa a outras franquias infanto-juvenis de sucesso como Crepúsculo e Jogos Vorazes. Desde Harry Potter (2001) Hollywood vem expandindo essa tendência em adaptar para as telas best sellers para o público jovem. Nesse início de século, a lista já é extensa, só para citar alguns: Eu Sou o Número 4 (2010), Cidade das Sombras (2008), Jogos Vorazes (2012), Instrumentos Mortais (2013), Ender’s Game (2013), Percy Jackson (2010) entre outros."

O fantasma da adolescência no filme "Divergente"




O fantasma da adolescência assombra o Capitalismo: como estender o período da vida que conhecemos como “juventude”, com toda a sua ansiedade e revolta, com a finalidade de adiar cada vez mais a entrada do jovem no mercado de trabalho? Filmes como "Divergente" (Divergent, 2014) é um exemplo da solução desse problema e, ao mesmo tempo, a descoberta de uma inesgotável fonte de lucros. Em cada década a indústria do entretenimento explorou essa “adolescência estendida”: rebeldes sem causa, punks, darks, góticos, emos. E agora, rebeldes “teens distópicos” de filmes como “Jogos Vorazes” ou “Ender’s Games”. Baseado em mais um indefectível romance infanto-juvenil, o filme “Divergente” traz a ambígua mensagem desses novos tradicionalistas de início de século: revoltem-se, sejam audaciosos, mas se abstenham de drogas e sexo e na segunda-feira voltem para a escola.



Divergente (Divergent, 2014) é mais um filme que se associa a outras franquias infanto-juvenis de sucesso como Crepúsculo e Jogos Vorazes. Desde Harry Potter (2001) Hollywood vem expandindo essa tendência em adaptar para as telas best sellers para o público jovem. Nesse início de século, a lista já é extensa, só para citar alguns: Eu Sou o Número 4 (2010), Cidade das Sombras (2008), Jogos Vorazes (2012), Instrumentos Mortais (2013), Ender’s Game (2013), Percy Jackson (2010) entre outros.



A procura da própria identidade e a descoberta do sexo e do amor são os temas universais da adolescência presentes nesses filmes, cujo desenvolvimento é amarrado por uma fórmula que parece comum: protagonistas que levavam uma vida aparentemente normal até um dia descobrirem que possuem estranhos poderes e que, por isso, são vigiados por entidades sombrias ou sistemas totalitários distópicos. E no transcorrer dessas sagas cinematográficas descobrirão o sexo e o amor que, em geral, tendem ou para os amores platônicos e impossíveis, ou então simplesmente para a abstinência sexual como um valor positivo.






São filmes que misturam inconformismo com conservadorismo – a desobediência adolescente como ritual de passagem. Na verdade são protagonistas que descobrem em si poderes extraordinários, assim como os adolescentes descobrem o futuro que os aguarda na vida com seus papéis e deveres e se revoltam, mesmo que brevemente.



Como veremos, essas sagas de revolta contra forças das trevas e sistemas totalitários é mais uma onda de um sub-zeitgeist que assombra cada década desde o pós-guerra (quando o jovem tornou-se um problemas econômico), e que é explorado regularmente pela indústria do entretenimento: rebeldes sem causa, hippies, darks, góticos etc.



O Filme




Adaptado do primeiro romance da trilogia best seller de Veronica Roth (Divergent, Insurgent, Allegiant), Divergente nos apresenta uma Chicago 100 anos no futuro, sobrevivente de uma guerra mundial, cuja sociedade é dividida por cinco facções com características primárias de personalidade que definem o grupo: os Candor (honestos), que prezam franqueza e ordem; os Abnegations (Altruístas), conhecidos pela modéstia e ajuda caridosa aos “sem facções” (os excluídos que vagam pelas ruas); os Erudites (Inteligentes) sérios estudiosos sempre em roupas sóbrias; os Amity (Pacíficos) cultivam a terra e vivem em harmonia sempre felizes; e os Dauntless (Audaciosos) bravos soldados que protegem a cidade.




Beatrice (Shailene Woodley) é um membro da Abnegação ao lado do seu irmão Caleb e seus pais. Se vestem com roupas simples e de cores monótonas. Seu princípio de abnegação é tão acentuada que só estão autorizados a dar uma olhada rápida no espelho a cada três meses, na hora de cortar o cabelo.



Basicamente não têm nenhum divertimento, mas Beatrice tem um ímpeto selvagem que a faz admirar a facção dos Audaciosos.



Quando ela se submete a um teste de aptidão, necessária a todos adolescentes com a finalidade de revelar a sua verdadeira natureza e determinar para qual facção se encaixarão na vida adulta, o resultado é inconclusivo: ela é uma “Divergente” - tem todas as qualidades de cada facção dentro dela, tornando-a potencialmente independente e perigosa para um sistema onde pensar de forma autônoma é intolerável.



Na Cerimônia anual de escolha da facção na qual viverão o resto das suas vidas, a qual os adolescentes se submetem pelos resultados dos testes, Beatrice escolhe a facção dos Audaciosos. Explicitamente, a Cerimônia é uma representação do mundo das escolhas adolescentes (profissão, faculdade etc.), tema que a franquia Harry Potter também explorou com o ritual da escolha das fraternidades no qual protagonistas eram submetidos.



Na facção aprenderá a lutar, atirar, saltar de trens, atirar facas, controlar sua mente em uma série de angustiantes simulações, tudo ao mesmo tempo em uma competição com outros iniciantes em um sistema de classificação exigente onde os perdedores serão expulsos, tornando mais um pária social na não-facção – mais representações do mundo competitivo escolar e profissional que angustia os adolescentes espectadores.



Mas ela é uma Divergente e, junto com seu líder e par romântico Four (Theo James), descobrirão uma conspiração para a erradicação de todos aqueles que querem pensar de forma autônoma, fora dos parâmetros limitadores das facções.



A juventude estendida




Divergente é tudo sobre identidade, sobre a busca de quem você é e como se encaixará nos papéis sociais quando sair da adolescência e entrar no mundo adulto.





No Pós-Guerra esse ritual de passagem da adolescência tornou-se um problema cultural para o Capitalismo: a juventude deveria ser estendida por uma simples questão macro-econômica – adiar a entrada do jovem no mercado de trabalho, estender a adolescência e a sua dependência econômica para que o sistema econômico tivesse tempo para absorvê-lo como sujeito economicamente ativo.



Essa necessidade estrutural do Capitalismo, somente alongou o período de ansiedades, dilemas, inconformismo e raiva  da adolescência. A vida escolar foi ampliada (segundo grau, universidade, pós-graduação, especializações etc.) por uma suposta necessidade de preparação do jovem para empregos futuros que, na verdade, se esvaziavam de sentido.



Mas, ao mesmo tempo, a indústria do entretenimento descobriu nesse período uma mina de ouro: cada década encontramos produtos culturais, modismos ou tendências que expressam essa perplexidade, raiva, angústia e depressão do jovem.



Os rebeldes sem causa dos anos 1950 representados por James Dean e Marlon Brando no cinema; hippies e a contracultura na década de 1960 onde da Direita à Esquerda, da Revolução Sexual aos Maoístas, tudo exalava contestação e protesto; nos anos 1970, novamente, por todo o leque social, do Glam Rock e androginia dos jovens de classe média ao Punk Rock das hordas desempregadas das periferias urbanas.



Nos anos 80 o “Dark” sintetizado em ícones como Robert Smith do The Cure e Peter Murphy da banda Bauhaus. Músicas cujas letras se inspiravam no universo gótico da literatura romântica dos séculos XVIII e XIX. Replicantes melancólicos (como os do filme Blade Runner, 1982), amores platônicos e a sensação de uma geração ter alcançado a adolescência e juventude no final da festa (daí a nostalgia pós moderna pela década de 50 na moda, arquitetura e filmografia).




Nos anos 90 o “Dark” é reciclado pelo “Gótico” e a literatura romântica é substituída pelos contos de terror. Jovens cuja aspiração é a de se tornar seres da noite, com longas capas pretas e lentas de contato especiais que alteram a cor dos olhos.



Na primeira década do século XXI temos a franquia de filmes Crepúsculo e o imaginário musical "Emo" destilando essas tendências depressivas em jovens e adolescentes.



Novos tradicionalistas?




E na década atual, a tendência representada em filmes como Divergente – o mix de sociedades totalitárias distópicas (o futuro mundo adulto) com reality games (a juventude artificialmente estendida pela crescente competitividade escolar, exames e concursos).



O paradoxo de todas essas tendências da indústria do entretenimento é que, aparentemente, alimentariam o inconformismo e a desobediência civil. Hollywood anarquista? Claro que não. Esse negócio lucrativo e inesgotável se baseia numa fórmula simples: quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem.



O filme Divergente explicita essa fantasia-clichê: o diretor Neil Burger e a escritora Veronica Roth querem que os jovens aproveitem a vida, sejam audaciosos, pulem de trens em movimento, façam esportes radicais e se revoltem contra o “sistema”. Mas tudo com responsabilidade: abstinência sexual, amores românticos e platônicos e fugir de drogas, seringas e de qualquer substância que altere seu estado de consciência.



O “sistema” em Divergente são os escritórios cleans repletos de gente engravatada: é o mundo careta onde os jovens estarão no futuro. A “revolta” dos protagonistas é contra eles, os engravatados corruptos. Quanto a coisa em si (o “sistema”), essa permanecerá. Afinal, é o futuro dos jovens – após a revolta, um emprego onde, nos seus tempos livres, praticarão bungee jumping e outras atividades cheias de adrenalina. Para na segunda-feira retornar ao “sistema”.


Ficha Técnica


Título: Divergente
Diretor: Neil Burger
Roteiro: Evan Daughtery baseado no romance de Veronica Roth
Elenco: Shailene Woodley, Theo James, Kate Winslet
Produção: Summit Entertainment, Red Wagon
Distribuição: Paris Films
Ano: 2014
País: EUA



Fonte: Cinegnose

"Parem, meninos, a briga não é essa", por Alberto Dines

PICICA: "Quando os sábios se enfrentam, apartá-los só prejudica os que desejam aprender, diz um velho preceito oriental. A controvérsia entre os dois cineastas – Eduardo Escorel e Jorge Furtado – sobre a crítica da mídia no Brasil, pelas amostras oferecidas, tem condições para converter-se numa valiosa contribuição ao próprio media criticism." 


JORGE FURTADO vs. EDUARDO ESCOREL

Parem, meninos, a briga não é essa

Por Alberto Dines em 30/01/2015 na edição 835



Quando os sábios se enfrentam, apartá-los só prejudica os que desejam aprender, diz um velho preceito oriental. A controvérsia entre os dois cineastas – Eduardo Escorel e Jorge Furtado – sobre a crítica da mídia no Brasil, pelas amostras oferecidas, tem condições para converter-se numa valiosa contribuição ao próprio media criticism

Tudo começou na edição de setembro de 2014 da sofisticada revista piauí, quando o cineasta, editor e professor de cinema Escorel fez a resenha do documentário O Mercado de Notícias do cineasta, encenador, produtor e publicitário Jorge Furtado. 

O embate ficou em banho-maria e nesta semana, quatro meses depois, acaba de ser retomado pelo gaúcho Furtado em seu site “Casa do Cinema de Porto Alegre” [ver “O mercado de notícias – dúvidas” (Escorel) e “‘Eu preciso de umas aspas suas’” (Furtado)].

Este observador entra na liça pela porta dos fundos, isto é para observar e lamentar o desperdício de energias. Surpreendido como muitos admiradores do contemporâneo de Shakespeare, Ben Jonson, que compôs em 1626 uma comédia sobre a recém-nascida imprensa periódica, por mera curiosidade indagou de Furtado como descobrira a tal obra. 

A curiosidade justifica-se: como biógrafo lidara extensamente com duas outras comédias de Jonson, “Volpone, ou a Raposa” e “Epicene, ou a Mulher Silenciosa” (escritas e encenadas em 1606 e 1609) e, como interessado na história da imprensa, localizara obras teatrais posteriores sobre o mesmo tema mas nunca tão próximas do início do moderno jornalismo (1605, com o lançamento em Strasbourg do primeiro mensário de que se tem notícia). 

A informação chegou semanas, depois trazida de forma casual e despretensiosa pelo próprio Furtado quando entrevistado pelo Observatório da Imprensa (ver aqui). Ele a pescara na História Social da Mídia, de Asa Briggs e Peter Burke (Zahar, 2004, pág. 64). A edição standard da obra de Jonson estende-se por onze volumes (1922-1923) e com isso desativa-se um dos tópicos da contenda Escorel-Furtado: só por um acaso seria possível encontrar obra tão raramente citada em tão extensa bibliografia e escondida atrás de um título tão pouco elucidativo – The Staple of News, que a tradutora da obra de Briggs & Burge converteu em “A Matéria da Notícia”, diferentemente da opção mais chamativa de Furtado e da parceira na tradução, Liziane Kugland (staple, além de grampo, também significa mercadoria, commodity ou matéria).

Na mesma tecla

O importante desta história é que o fenômeno não é novo: o teatro levou 21 anos para usar a imprensa como tema; o cinema, mais ágil, apenas 14. Inventado em 1895 pelos irmãos Lumière, em 1909 o veterano ator Van Dyke Brook dirigiu o primeiro filme sobre a imprensa, The Power of the Press

Mas o pomo da discórdia parece ser a interdição que pesa sobre o debate a respeito do desempenho e procedimentos jornalísticos na grande imprensa brasileira. É um fato indiscutível, incontestável e lamentável. No entanto, as exceções apontadas por Furtado são arroladas de tal maneira que parecem insignificantes, ninharias. 

Embora apenas dois jornais brasileiros tenham oficializado a função do ombudsman, a Folha de S. Paulo tem o seu há 25 anos, um quarto de século. Ninharia? Apenas um ano depois de promulgada a Constituição Cidadã, a Folha oferecia à sociedade uma contrapartida que não pode ser desprezada, nem minimizada. Quantos países da América Latina têm ouvidorias ou defensorias do leitor? Zero.

Ao citar o programa Observatório da Imprensa como o único da TV, Furtado parece estranhar que seja transmitido numa rede de TV pública. Ser alternativa é uma das funções da TV pública, porém nosso horário não é alternativo, é nobre, nobilíssimo – 20 horas – e reprisado na mesma noite às 24h para os notívagos (jornalistas & cia). 

A entrevista com Jorge Furtado ao OI na TV fazia parte de uma série de oito especiais em homenagem aos 25 anos da criação da função de ombudsman pela Folha. Da série participaram onze ouvidores da Folha em duplas de dois (apenas Renata Lo Prete não conseguiu liberar-se da intensa agenda de trabalho), acrescidos da então ouvidora de O Povo (Fortaleza, CE), Daniela Nogueira. Foi complementada com a entrevista do cineasta-ombudsman Jorge Furtado (aqui) e do humorista-gozador-da-mídia, Fábio Porchat (aqui). 

É pouco? No dia em que o Observatório voltar a ser compartilhado pela TV Cultura, a audiência dobrará. E no dia em que as páginas e cadernos de TV da imprensa diária ocuparem-se da nossa programação, mais cidadãos participarão do debate midiático.

A homenagem aos ombudsman foi apresentada de 19/8 a 28/8/2014, ela sim em horário alternativo (melhor dizer, suplementar) porque o programa ao vivo continuava a ser apresentado às 20 horas. E, como acontece com todas as edições, os programas estão disponíveis no site do Observatório. Breve o programa completará 17 anos de existência e o site, 19. 

Bagatela, irrisório? Em quase duas décadas batendo na mesma tecla – “Você nunca mais lerá jornal do mesmo jeito” – tentamos injetar uma dose regular de ceticismo numa sociedade impregnada pelo culto da celebração e pela devoção a equívocos. Faz bem à saúde dos povos, embora entre nós ninguém goste de aplaudir dúvidas ou conviver com desconfianças e descrença. Em outras palavras – ninguém gosta de marginalizar-se. Todos querem ser maioria, de preferência esmagadora maioria.

Primado da mesmice

A divergência entre os dois eminentes cineastas parece incubar-se numa paradoxal identidade: a atitude blasé, entediada, que Furtado utilizou para cutucar Escorel e este poderá utilizar para atacar o que lhe parece uma fúria iconoclasta de Furtado.

Precisamos urgentemente de ambos. Na segunda-feira (26/1), os rivais Folha e Estadão ostentavam com grande destaque em suas nobres páginas de opinião o mesmíssimo Ives Gandra Martins. Em ambas o reputado tributarista escrevia sobre liberdade de expressão, identicamente qualificado pelos anfitriões como professor emérito das escolas de Comando e Estado Maior do Exército e Superior de Guerra, além de filósofo. Em ambas a mesma acintosa omissão: o autor é um dos primeiros brasileiros a ingressar na prelazia ultraconservadora conhecida como Opus Dei, é seu principal supernumerário e porta-voz mais influente.

Casualidade, evidentemente. No Globo os opinionistas do dia eram outros, mas lá comparece regularmente Carlos Alberto di Franco, pontífice dos cursos de jornalismo da mesma Opus Dei.
Migalhas, mixaria, abobrinhas. A mesmice está nos tornando insensíveis e cegos, incapazes de discernir e assustar. Incapazes principalmente de escolher a boa briga.

Fonte: Observatório da Imprensa

“Antes tínhamos os sem-casa, agora estamos criando os ‘sem-cidade’” - Bruno Pavan entrevista Raquel Rolnik

PICICA: "Urbanista Raquel Rolnik fala sobre a crise das cidades no Brasil e como a ideia de estruturá-la a partir do transporte público pode ser algo revolucionário"

“Antes tínhamos os sem-casa, agora estamos criando os ‘sem-cidade’”


Reprodução

Urbanista Raquel Rolnik fala sobre a crise das cidades no Brasil e como a ideia de estruturá-la a partir do transporte público pode ser algo revolucionário

 29/01/2015
Bruno Pavan,

De São Paulo (SP)

 A urbanista e professora Raquel Rolnik, da Universidade de São Paulo (USP), é inquieta por natureza. Desde o seu modo agitado de responder as perguntas dessa entrevista até a sua inquietação com os problemas das cidades modernas, zona de conforto não é algo com que ela trabalhe.

 Apesar dos avanços da entrada de milhares de pessoas no mercado consumidor, Raquel reforça a tese de que “da porta pra fora, nada mudou”. Ela também critica a gestão do Ministério das Cidades. “Num momento em que era absolutamente necessário fazer uma revolução nas cidades [...], estamos colocando no comando da política urbana no Brasil quem historicamente se beneficiou dela como ela sempre foi.”

 Ela também considera que as prefeituras devem comprar a briga da crise da água no estado de São Paulo. “Isso não pode ser uma decisão da empresa que vende a água, isso é uma decisão política, e como decisão política ela deve ser tomada pelos cidadãos liderados pela prefeitura”, criticou.

Brasil de Fato – De 2013 pra cá, o debate em torno da importância das cidades vem sendo pautado pelos sem-teto, pelo Passe Livre e mais recentemente em torno da questão da água. Por que as cidades apareceram com tanta ênfase no debate político?

 Raquel Rolnik –  Junho de 2013, na verdade, representou uma espécie de encontro nas ruas de uma série de organizações e mobilizações que já havia acontecendo desde o começo do milênio. Em 2013, elas têm diretamente a ver com o fato de que uma política geral macroeconômica que foi conduzida pelo governo Lula foi uma política de inclusão via consumo no mercado. Isso foi importantíssimo no sentido que jamais havia sido feito antes. As cidades sempre foram pensadas para privilegiar a mobilidade de poucos. Transporte coletivo era coisa de pobre, era uma política de quinta e que servia somente como extração de renda para os concessionários. Interessava como negócio, nunca como serviço. Na hora em que é ampliado o acesso ao mercado, os automóveis e motocicletas começaram a disputar o mesmo espaço que os 30% de quem tinha carro no início dos anos 2000. Como o alto número de carros congestionou tudo, se criou a crise da mobilidade que expôs o modelo segregado e excludente de cidade. Diante disso, a tarifa e o transporte são a ponta do iceberg, que coloca nu um modelo de cidade que bloqueia o acesso à cidade. Tem muito  a ver a explosão de 2013 com essa emergência da pauta urbana. As pessoas falavam: da casa pra dentro eu comprei TV, posso viajar, eu tenho computador, eu como muito melhor do que comia, mas da casa pra fora, ou seja, do nível do público, da dimensão pública da vida ficou tudo uma porcaria, não mudou nada! Percebeu que não se compra cidadania no feirão da Caixa ou numa concessionária de carro. O que se demanda é uma transformação na dimensão pública, e a cidade é uma expressão mais clara e evidente disso. Temos que entender isso como um ciclo político porque movimentos de moradias já existiam, o que acontece agora é uma espécie de nova geração de movimentos de moradias que têm menos compromissos políticos com a institucionalidade existente e mais capacidade de mobilização.

 Sobre essa questão das cidades serem excludentes, algumas políticas estão sendo adotadas, como a implantação do plano diretor em São Paulo. Qual a importância dele, onde você acha que ele vai evoluir e onde não vai?

O Plano Diretor não é varinha de condão. Temos um modelo predominante de planejamento de gestão da cidade histórico, guiado pelo lucro imobiliário, extração de renda, isso é um modelo hegemônico, as transformações têm que ser muito mais radicais, e não é no campo de um documento que isso acontece. O que o plano fez foi traçar limites, dentro desta ordem dominante, que se bem apropriados pelos protagonistas destas lutas podem possibilitar avanços. Um exemplo é a histórias das Zonas Especiais Intersocial (ZEIS), é muito interessante a trajetória deste instrumento. Quando eu me formei em urbanismo nos anos de 1970, se pegava os mapas das cidades e não apareciam as favelas e periferias, era como elas não existissem. O primeiro movimento a fazer com que eles existissem foi o movimento para demarcar as favelas e alojamentos irregulares, como Zonas Especiais Intersocial, permitindo que eles fossem regularizados, depois este evoluiu um pouco no entendimento que da mesma maneira que o zoneamento reservava a terras para o uso comercial, residencial ou industrial, ele deveria reservar terras para a habitação popular. Então foram criadas as ZEIS de áreas vazias e subutilizadas. E isso tem avançado, em São Paulo tem sido um instrumento importante, não é algo que revoluciona já a cidade, mas é um avanço na luta pela moradia, um instrumento político fundiário. Esse plano também deu uma guinada porque a cidade está dando uma guinada cultural também na direção da valorização do transporte público como elemento estruturador da cidade e não as vias por automóvel. Agora o plano em si mesmo não produz nada, existe uma luta permanente pra que essas coisas sejam implementadas.

 Uma das coisas que estão na pauta é cobrar mais IPTU de prédios que não cumprem a função social, qual o avanço que isso traz?

Isso é uma coisa que já está definida desde a Constituição de 1988 e que até hoje não se implementa nas cidades. O IPTU nasceu diante da demanda que estava presente na emenda popular sobre a reforma urbana para combater a especulação imobiliária e sair em defesa da função social da cidade e da propriedade. O IPTU progressivo é uma instrumentalização dessa política no sentido de que a propriedade que não tivesse cumprindo a função social que o Plano Diretor lhe atribui estará sujeita a sanções e uma delas é que se ela não for ocupada vai ter que pagar um IPTU cada vez mais alto. Depois de mais de 20 anos, parece que vão realmente colocar essa cobrança em prática. Já tem uma lei aprovada no Estatuto da Cidade em 2001, no Plano Diretor de 2002 e uma regulamentação municipal. Não tem mais justificativa para não aplicá-lo.

 Iniciativas como a faixa exclusiva de ônibus e as ciclofaixas que estão sendo implantadas em São Paulo mudam a relação das pessoas com a cidade? 

 Completamente. A prioridade para o transporte coletivo é uma revolução urbanística. A cidade passa a ser muito mais suporte pra vida coletiva do que pro usufruto individual. Esse processo é lento, porque temos uma cidade pensada para o contrário disso, mas ele pode significar uma mudança muito importante.

 Em um artigo recente você diz que as prefeituras também deveriam agir na questão da água no estado. Quais as posições que elas poderiam tomar quanto a isso?

 A água se transformou em uma mercadoria que é vendida e comprada. Como toda a mercadoria ela tem como base o lucro da empresa e não o bem estar e a qualidade de vida das pessoas. O que nós estamos vivendo agora já é a escassez e nesse momento a pergunta que não quer calar é: quem vai ter acesso à água e quem não? Isso não pode ser uma decisão da empresa que vende a água, isso é uma decisão política, e como decisão política ela deve ser tomada pelos cidadãos liderados pela prefeitura. A capital e os municípios da região metropolitana vão ter que assumir uma posição em relação a isso e definir quais são as prioridades: quem define o bairro que vai ter água e o bairro que não vai ter? Quem define se os hospitais e as escolas vão ter água ou não? A discussão está posta agora e diante dela não se deve travestir essa discussão numa questão técnica que a Sabesp resolve. Evidentemente as prefeituras têm um receio de puxar pra elas o problema, mas o posicionamento é no sentido de que elas devem exigir do governo do estado e da Sabesp uma posição muito mais transparente essas decisões de quem vai ter água e quem não vai, porque no fundo se trata disso. De fato o racionamento já está acontecendo, por mais que o governador diga que não, a decisão foi tomada. Agora, quem resolveu isso? Quem discutiu isso? Quem achou que isso é o melhor? Não tem nenhuma transparência é uma coisa oculta e não pode ser tratada dessa maneira.

 No âmbito do governo federal, o ex-prefeito Gilberto Kassab foi escolhido para ser o ministro das Cidades, que gerencia programas com grandes verbas. Que sinal o governo passa com essa escolha?

 Não vejo nenhuma diferença em colocar o Kassab ou deixar o ministério sob o comando do PP. Abandonou-se o Ministério das Cidades e a pauta da reforma urbana entrou para dentro da bacia da governabilidade. Foi uma posição política tomada na eleição do Lula e nós estamos vendo as consequências que é o desastre da política habitacional e urbana no Brasil. Num momento que era absolutamente necessário fazer uma revolução nas cidades e uma mudança muito radical na política urbana, e que eu acredito que existiria apoio muito grande da população para essas mudanças, estamos colocando no comando da política urbana no Brasil quem historicamente se beneficiou dela como ela sempre foi. Só tem duas coisas só que interessam nas cidades: a terra como ativo financeiro e os ativos eleitorais. Infelizmente, nós estamos nessa sinuca de bico desde 2006, e a política urbana foi uma das sacrificadas.

 Alguns analistas, como por exemplo o Marcio Pochmann, acusa o Minha Casa Minha Vida de deixar o cidadão longe dos serviços básicos das cidades como praças e postos de saúde. Você concorda com essas críticas? Como você vê o programa? 

 Ele teve o mérito de disponibilizar um grande subsídio do poder público na habitação, coisa que não havia sido feito nunca, de ter o Estado garantindo o acesso à habitação e isso foi muito importante. Entretanto, ele tem dois problemas fundamentais: o primeiro é que ele não é um programa habitacional, é uma política de casa própria individual e ela não atende a totalidade das demandas muito variadas que existem hoje no Brasil. Ele tem um modelo insustentável que atinge as famílias mais pobres que não têm a menor condição de pagar o condomínio. Outro problema é exatamente esse: como as casas são produzidas pelo mercado é ele quem define qual vai ser a localização dos empreendimentos e ela é sempre a pior possível, onde não tem cidade. Então a gente tinha os sem-casa e agora nós estamos criando os “sem-cidade”. Nós já vimos esse filme porque essa política já foi aplicada no Chile, no México e na África do Sul e as consequências foram desastrosas.

Fonte: Brasil de Fato