janeiro 22, 2015

"Estranho meio caminho", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "O islamismo não é a religião dos pobres da Europa, assim como o cristianismo não é a religião dos pobres no Brasil. Os pobres não *pertencem* a nenhuma religião. Seria desmerecer a experiência da pobreza ao mesmo tempo que supervaloriza o pertencimento a alguma religião. São os pobres, — os imigrantes, os precários, os explorados, aqueles que experimentam cotidianamente a privação, o estigma, a dor, a injustiça social, — eles é que em primeiro lugar tomam posse das religiões, que as fazem pertencer a si como peças do mosaico da vida. Os pobres é que as ocupam e nelas moldam uma mensagem de amor, dignidade, de jamais aceitar a condição de derrotado e avançar sobre o improvável. Os pobres do mundo é que brotam na religião a expressão da força que já os possui, os possui num nível corporal, emocional, imediato.

As formas de cooperação, solidariedade e caridade articuladas pelas religiões não são mérito de igrejas, dogmas, doutrinas, ideias descarnadas ou santos sacerdotes. Esses são meros representantes, por vezes usurpadores da vitalidade maior e tão mundana da relação de pobres e religiões. São arranjos muito concretos, domésticos, diretamente materializados. Cada casa com sua capelinha, moradores ajoelhados ante padroeiros e protetores, entre mandingas, terços e rezas, uma religiosidade apegada ao concreto, em que Jesus, a Virgem, os santos e orixás caminham conosco, também estão conosco, somos juntos, sua face, sua verdade carnal e sem intermediários." 

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O islamismo não é a religião dos pobres da Europa, assim como o cristianismo não é a religião dos pobres no Brasil. Os pobres não *pertencem* a nenhuma religião. Seria desmerecer a experiência da pobreza ao mesmo tempo que supervaloriza o pertencimento a alguma religião. São os pobres, — os imigrantes, os precários, os explorados, aqueles que experimentam cotidianamente a privação, o estigma, a dor, a injustiça social, — eles é que em primeiro lugar tomam posse das religiões, que as fazem pertencer a si como peças do mosaico da vida. Os pobres é que as ocupam e nelas moldam uma mensagem de amor, dignidade, de jamais aceitar a condição de derrotado e avançar sobre o improvável. Os pobres do mundo é que brotam na religião a expressão da força que já os possui, os possui num nível corporal, emocional, imediato.

As formas de cooperação, solidariedade e caridade articuladas pelas religiões não são mérito de igrejas, dogmas, doutrinas, ideias descarnadas ou santos sacerdotes. Esses são meros representantes, por vezes usurpadores da vitalidade maior e tão mundana da relação de pobres e religiões. São arranjos muito concretos, domésticos, diretamente materializados. Cada casa com sua capelinha, moradores ajoelhados ante padroeiros e protetores, entre mandingas, terços e rezas, uma religiosidade apegada ao concreto, em que Jesus, a Virgem, os santos e orixás caminham conosco, também estão conosco, somos juntos, sua face, sua verdade carnal e sem intermediários.

Cânones da ciência social brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda, não hesitaram em aí lamentar a ausência de “sentimento religioso profundo e consciente”, como se a tal “religiosidade de superfície” não fosse a mais densa (a pele é o mais profundo). Porque a melhor banhada na riqueza da vida, suas tribulações, delícias, generosas coisas do mundo.

Quem persegue o rigorismo da fé para esculpir o crente de mármore, que busca pertencer rigorosamente à religião, dar-lhe o corpo e a alma, esses não são os pobres, pelo menos não enquanto viventes e resistentes diante dos desafios e dificuldades. São, antes, os teocratas, os mercadores de paixões tristes, os vendilhões do credo, os dogmáticos da letra, os arrogantes da moral, bem como todas as seitas grandes ou pequenas que falam *em nome* de Deus.

Estes impulsionam atos extremos como de Anders Breivik ou dos irmãos Kouachi, no epicentro de movimentos identitários, catárticos, pedagógicos e moralizantes. Nada tem a ver com amor e pobreza. Quando, ruminando mensagens de rancor, eles pegam em armas e levam a violência ao grau do terror, não o fazem em nome dos deserdados. Não se defendem os pobres cometendo crimes em nome de Deus. Quem mata pela vingança divina não assume a face do oprimido nem faz teologia da libertação. Pelo contrário. Está do lado antípoda da experiência religiosa, no lado dominante e opressor, o lado castigador, punitivista.

Admitir qualquer ideia de “violência do oprimido” no ataque ao Charlie Hebdo é trair o oprimido duas vezes, na causa e na consequência. É negar a força da pobreza e a religiosidade nela. Que estranho meio caminho esse de quem se coloca entre chargistas assassinados e seus covardes assassinos. Que estranho sociologismo de esquerda.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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