fevereiro 10, 2015

“A Sorbonne para os trabalhadores”, por Rafael Leopoldo

PICICA: "A aliança entre estudantes e trabalhadores estava feita e iria ressoar mais tarde, quando todos eles estariam caminhando juntos, protestando contra universidades desvinculadas do social, associado a protestos trabalhistas, como melhores salários, carga horária reduzida e aposentadoria. Um momento narrado é como, em meio à marcha, alguém gritou: “A usina para os trabalhadores” – e, então, a multidão fazia ecoar a mesma frase. Depois um estudante teria gritado: “A Sorbonne para os estudantes” – e novamente a multidão ecoaria tal frase. Depois destas duas frases, houve um momento de silêncio e então surgiu uma terceira: “A Sorbonne para os trabalhadores” – e os membros da passeata se divertiram e riram. A universidade era colocada em questão, criticada, pois estava desvinculada dos problemas reais. Ela somente reproduziria uma determinada realidade, da qual os estudantes estavam fartos."

“A Sorbonne para os trabalhadores”

 
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O grupo inglês Solidarity surgiu no início dos anos 60, a partir de uma dissidência trotskista do Socialist Labour League; outra dissidência importante é o Socialismo ou Barbárie. O Solidarity manteve-se ativo até meados dos anos 80. Contudo, um de seus textos mais importantes talvez seja exatamente sobre o Maio de 68, um texto pequeno e de rápida leitura, primeiramente publicado em brochura no calor do acontecimento. Membros do Solidarity se mantiveram como testemunhas oculares do Maio de 68 por duas semanas.  Era um olhar estrangeiro sobre o movimento, o que dava uma maior mobilidade entre tantos grupos antagonistas, grupos rivais que tinham que manter uma posição ideológica, que também demarcava um território.

É importante salientar que este texto é anônimo. Quando se tentou rastrear o autor definitivo da obra, ironicamente se chegou ao nome de Maurice Brinton que, por sua vez, seria um pseudônimo de um possível cirurgião londrino. É a esta voz anônima que relata seus dias em meio ao acontecimento que é preciso escutar primeiramente, pois com ela é possível ouvir elementos bem característicos do Maio de 68. Esta voz não reivindica um direito autoral, mas sim apresentar certas ideias que se vão fazendo comuns diante dos acontecimentos.


O texto Maio de 68  aparece como uma descrição do evento e uma exposição de determinadas ideias, apresentando determinados confrontos políticos que envolviam diversos grupos, alguns já estabelecidos e outros que se formavam no momento das reivindicações. Podem-se colocar três pontos principais que foram abordados naquele momento, de acordo com o desenvolvimento do texto. Primeiro, uma crítica à universidade e sua dissonância para com a sociedade. Segundo, uma crítica à sociedade capitalista moderna e seu modelo burocrático. O terceiro e último diz respeito a um temor que envolve o próprio movimento revolucionário, isto é, a pós-revolução, na qual existe o perigo de cristalizarem-se novamente estruturas burocráticas. Trata-se, assim, de uma crítica interna da estruturação ou da constituição de grupos e instituições que possam formalizar as prerrogativas de uma revolta.


Ao apresentar-nos o Maio de 68, este anônimo que estava entre os estudantes e trabalhadores começa a sua escrita na conhecida Noite das Barricadas. No chão e no ar, ainda parecia haver memórias daquela noite, na qual a revolta foi mais forte: no chão, os escombros e, no ar, o leve cheiro de gás lacrimogêneo. É a respeito destes dias que o texto nos dá uma bela imagem que é a união dos trabalhadores com os estudantes:

O local também ofereceu uma broca pneumática. Os estudantes não puderam usá-la, é claro – não, até que um operário da construção que passava mostrou como usá-la; talvez o primeiro trabalhador a apoiar ativamente a revolta estudantil. Uma vez quebrada, a superfície da rua forneceu paralelepípedos, que logo foram utilizados de várias formas. Tudo isso já é história.

Neste momento podemos ver as possíveis relações que a revolta estava estabelecendo, fazendo alianças com os trabalhadores, com o cidadão comum de Paris, dividindo partidos, definindo opiniões, seguimentos, gerando novas formas de práticas e teorias, de grupos e ações. A aliança entre estudantes e trabalhadores estava feita e iria ressoar mais tarde, quando todos eles estariam caminhando juntos, protestando contra universidades desvinculadas do social, associado a protestos trabalhistas, como melhores salários, carga horária reduzida e aposentadoria. Um momento narrado é como, em meio à marcha, alguém gritou: “A usina para os trabalhadores” – e, então, a multidão fazia ecoar a mesma frase. Depois um estudante teria gritado: “A Sorbonne para os estudantes” – e novamente a multidão ecoaria tal frase. Depois destas duas frases, houve um momento de silêncio e então surgiu uma terceira: “A Sorbonne para os trabalhadores” – e os membros da passeata se divertiram e riram. A universidade era colocada em questão, criticada, pois estava desvinculada dos problemas reais. Ela somente reproduziria uma determinada realidade, da qual os estudantes estavam fartos.


Contudo, para alguns outros “velhos rebeldes”, as críticas à universidade lhes pareciam uma piada, pois tratavam de adaptar a universidade à sociedade moderna, sendo que a própria sociedade moderna é que deveria ser rejeitada. O intuito deles para uma revolta não se deu na tentativa de uma adaptação, ou por valores econômicos, mas em uma mudança que não envolvesse a manutenção do que degradaria a vida, desta forma temos uma crítica à sociedade capitalista moderna e toda a sua burocratização. Os estudantes, os trabalhadores, os cidadãos viram nas ruas a cólera da máquina estatal :

Os moradores locais viram o que aconteceu, a violência dos ataques da CRS, as investidas contra os feridos, os ataques contra pessoas que só observavam, a fúria solta da máquina do Estado contra aqueles que o desafiaram. Aqueles que estão nas ruas são as pessoas comuns de Paris, pessoas de distritos vizinhos, horrorizadas com o que ouviram no rádio ou leram nos jornais, e que vieram caminhar em uma bela manhã de domingo para ver tudo com seus próprios olhos”

Criticava-se agora um modo de vida burguês, que é entendida pelo autor como uma vida trivializada e repressiva, uma vida que então passavam a considerar medíocre e quiseram tomar as possibilidades de existência para as suas próprias mãos, e não mais deixá-las nos dedos sebosos de tecnocratas e generais.


Com várias críticas à universidade e à sociedade capitalista moderna, também se formulou uma crítica às próprias formas de estruturação dos grupos.  Desde os primeiros dias de revolta apareciam não somente críticas, mas também propostas. Era uma multidão, mas com a bela organização das colmeias, no qual as vozes estavam ganhando forma :

A primeira impressão [de quando a Sorbonne foi ocupada] era de que se tratava de uma gigantesca panela de pressão – com pensamentos e aspirações retidos – que fora repentinamente aberta, fazendo com que explodisse e seu conteúdo fosse assim lançado do domínio do real e do possível. Através da transformação do meio ambiente, as próprias pessoas se transformaram. Aqueles que nunca se atreveram a dizer nada, de repente sentiam como se seus pensamentos fossem os mais importantes do mundo – e então os expressavam. O tímido tornou-se comunicativo. O desamparado e isolado de repente descobriu que a força coletiva se encontra em suas mãos. O tradicionalmente apático de repente se engajou intensamente. Uma tremenda onda de comunidade e coesão apanhou aqueles que anteriormente se achavam impotentes e isolados como se fossem marionetes dominadas por instituições que eles não poderiam compreender nem controlar. As pessoas simplesmente apareceram e começaram a conversar umas com as outras sem o menor sinal de constrangimento. Este estado de euforia permaneceu durante a primeira quinzena em que eu estive lá. Uma frase rabiscada no muro resumia isso perfeitamente: “Dèja dix jours de bonheur”

Desta forma surgiam os grupos, as assembleias, as frases tão emblemáticas do Maio de 68 que eram escritas nas paredes (veja aqui). A ocupação física da Sorbonne foi uma explosão intelectual dos estudantes e dos trabalhadores. Entretanto, não era somente a Sorbonne que tinha o seu papel a cumprir. A nova faculdade de letras Censier também tinha sido ocupada, e havia uma grande aspiração por autogestão; faziam-se reuniões para saber quais panfletos produzir e divulgar. Se a Sorbonne era noturna com suas conversas, Censier era diurna ao produzir o material revolucionário de divulgação. Em ambos os lugares, havia muitas brigas e atritos dentro do próprio movimento e entre a diversidade de partidos. Uma crítica exposta nesse panfleto é que a própria “esquerda tradicional” não conseguiu pensar o Maio de 68 sem cair em velhos ideais e hábitos e, assim, não aprendendo com aquele acontecimento, nem produzindo formas de uma mudança no âmbito social. Isso teria feito com que vários grupos caíssem novamente em estruturas burocráticas ou se colocassem ainda em uma posição mais fácil – a de simplesmente negar todas as instituições e toda a teoria – em vez de se colocarem também como produtores deste saber e destas instituições. O Maio francês salienta que, se uma revolução for somente um leve abalo, ela sempre fará parte do capitalismo e o ajudará na manutenção do seu estado e no aperfeiçoamento de novas técnicas mais sutis de dominação.

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Fonte: Razão Inadequada

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