abril 30, 2015

Bancada da Jaula: os interesses e doações milionárias por trás da redução (Brasil de Fato)

PICICA: "O deputado federal Silas Câmara (PSD-AM) é o caso mais escancarado dos interesses econômicos que permeiam a discussão sobre a redução da maioridade penal." EM TEMPO: Cai a máscara do parlamentar líder da Assembleia de Deus no Amazonas, financiado por empresas de segurança, que compõe a Bancada da Jaula. A propósito, você sabe quem financiou seu deputado federal?

Bancada da Jaula: os interesses e doações milionárias por trás da redução

Luiz Alves/Agência Câmara 
O deputado federal Silas Câmara (PSD-AM) é o caso mais escancarado dos interesses econômicos que permeiam a discussão sobre a redução da maioridade penal.

29/04/2015

Silas Câmara / Foto: Leonardo Prado-Agência Câmara


Por Revista Vaidapé

Um dos 43 parlamentares responsáveis pela aprovação da admissibilidade da PEC 171/1993, que prevê a redução da maioridade penal para 16 anos, se revoltou contra a expressão Bancada da Bala. O fato ocorreu na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, que aprovou a tramitação da medida, no dia 31 março. O debate segue no Congresso, e ainda se torna pertinente entender o que significa esse conjunto de parlamentares.

A denominação Bancada da Bala se refere ao conjunto de políticos ligados à indústria de armas, ex-policiais e militares de modo geral. O grupo capitaneia diversas propostas que representam um retrocesso na política de segurança pública do Brasil.

Além do encarceramento em unidades penitenciárias de adultos para adolescentes a partir dos 16 anos de idade, a Bancada da Bala se movimenta para desmontar o Estatuto do Desarmamento através de 41 projetos, dentre os quais um deles determina a revogação total do Estatuto.

Em uma fala durante a sessão que fez avançar as perspectivas de redução da maioridade penal, o parlamentar disse se sentir ofendido e considerou o termo pejorativo. Sugeriu, então, que o grupo passasse a ser identificado como Bancada da Vida, por defender “os cidadãos de bem”, segundo o próprio.

A expressão Bancada da Bala também é adaptada para outros contextos, como, por exemplo, a Bancada Ruralista, dos representantes de corporações do agronegócio. Assim como há a Bancada da Bola, composta por parlamentares ligados ao futebol.
O fato é que uma investigação simples sobre o financiamento da campanha dos parlamentares a favor da redução apontam uma nova – e mórbida – realidade: o surgimento da Bancada da Jaula.

Bancada da Jaula

O deputado federal Silas Câmara (PSD-AM) é o caso mais escancarado dos interesses econômicos que permeiam a discussão sobre a redução da maioridade penal. Nas eleições de 2014, ele recebeu R$ 200 mil de uma empresa chamada Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda. para sua campanha eleitoral. A Umanizzare é uma empresa que gere presídios privatizados.

Os presídios privatizados são um fenômeno recente no Brasil. De acordo com Robson Sávio, coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) da PUC-Minas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o modelo pode caracterizar um aumento das prisões. Ele é um dos entrevistados do documentário sobre o assunto produzido pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

Também nas eleições de 2014, a Umanizzare escolheu outras duas candidatas para fazer doações. A esposa de Silas, Antônia Lúcia Câmara (PSC-AC), recebeu R$ 400 mil, e a filha do casal, Gabriela Ramos Câmara (PTC-AC), outros R$ 150 mil. Ao todo, a empresa de gestão prisional doou R$ 750 mil para as campanhas eleitorais da família Câmara. A conta, é claro, tem que fechar: só no Amazonas, estado do deputado Silas Câmara, a Umanizzare é responsável por seis unidades prisionais. No Tocantins, a empresa administra outras duas unidades.

Silas Câmara é um dos 17 congressistas apontados pela Organização Não Governamental (ONG) Transparência Brasil que poderia ter sido barrado nas eleições de 2014 por conta da Lei da Ficha Limpa. Ele e sua mulher, Antônia Lúcia Câmara, foram condenados pelo Tribunal Regional Eleitoral do Acre (TRE-AC) por abuso de poder econômico nas eleições de 2010 e declarados inelegíveis por três anos. Único eleito pela família, Silas conquistou o direito de assumir o mandato na Justiça.

Silas é um dos 43 parlamentares responsáveis pela aprovação da admissibilidade da PEC 171/1993. Ele esteve presente na sessão, votou pela redução da maioridade penal e comemorou o resultado com aplausos e gritos, bem como as mais de quatro dezenas de congressistas que fizeram o mesmo voto. Mais que ideológico, a comemoração de Silas tinha um viés financeiro: com a redução da maioridade penal, o aumento da população carcerária é uma consequência automática. Para a empresa Umanizzare, financiadora do parlamentar, quanto mais presos, mais lucro.

Além da Umanizzare, Silas Câmara recebeu R$ 210 mil da empresa Fiel Vigilância Ltda. e outros R$ 190 mil da Total Vigilância Ltda. As duas empresas trabalham com serviços de escolta armada e vigilância ostensiva. Silas não é o único dos votantes pela redução da maioridade penal que tem como financiador uma empresa de segurança. Além dele, os parlamentares Bruno Covas (PSDB-SP), o pastor evangélico João Campos (PSDB-GO) e Felipe Maia (DEM-RN) também receberam montantes elevados de empresas do setor.

Como se não bastassem os mandatos comprometidos com as empresas que lucram com o aprofundamento do Estado penal e repressor, dos 43 deputados responsáveis pela aprovação da PEC da Redução, 25 têm problemas na justiça e estão envolvidos em algum processo criminal.

O pastor João Campos é um deles. Além de processado por embolsar o salário dos funcionários, recentemente, emitiu uma nota oficial de repúdio ao beijo lésbico, protagonizado por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg em uma novela da Rede Globo. A intolerância é a essência do mandato de Campos. Bruno Covas e Felipe Maia também estão na lista dos envolvidos em processos criminais.

As eleições de 2014 formaram o que o diretor do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) chamou de o Congresso “mais conservador no período pós-1964”. A redução da maioridade penal assusta, mas não surpreende. Não com os parlamentares eleitos para a atual legislatura.

Fonte: Brasil de Fato

Política e Desencanto - Entrevista com Vladimir Safatle

PICICA: Para os professores do Paraná, solidariamente.

Política e Desencanto - Entrevista com Vladimir Safatle ( Professor de Filosofia da USP )

Documentários e Filmes

Aula de Claudio Ulpiano - Pensamento e liberdade em Espinoza

PICICA: "Sobre essa tristeza e impotência que sentimos quando essas forças brutais se batem sobre nós. Vamos assistir mais uma vez a Ulpiano falando sobre Espinoza. Renata Duarte"

Aula de Claudio Ulpiano - Pensamento e liberdade em Espinoza

Esta é a primeira aula gravada de Claudio Ulpiano. Foi dada no outono de 1988, no Planetário da Gávea, no Rio de Janeiro.


A Short History of America by R. Crumb and Joni Mitchell

PICICA: "Music Video: "A Short History of America" cartoon poster by R. Crumb with music by Joni Mitchell, "The Big Yellow Taxi" ("They paved paradise to put up a parking lot!")"

A Short History of America by R. Crumb and Joni Mitchell

bdlightner

Maysa - Série Estudos 1975 (Completo) Paulo Henrique Rafael Paulo Henrique Rafael

PICICA: "No dia 16 de novembro de 1975, um domingo -- a TV Cultura exibiu um programa incomum, diferente, original. A convidada era Maysa -- o nome -- Maysa: Estudos. Dirigido pelo provocador Antônio Abujamra, que pouco antes comentara -- "Hoje eu quero arrancar o coração e a alma desta mulher." -- ao cenografista Heraldo de Oliveira. Maysa: Estudos, na verdade era para ter sido mais um episódio do prestigiado Ensaio, um dos programas musicais mais celebrados da televisão brasileira. A sugestão do episódio fora dada à Fernando Faro, o diretor da atração, pelo maestro Júlio Medaglia, no último momento, Faro que também era assessor da presidência da emissora, foi comunicado de que haveria uma reunião importante no mesmo horário de sua gravação com Maysa. Assim, não houve outro jeito se não chamar um substituto, e a escolha recaiu logo sobre Abujamra. E assim foi feito, as mesmas marcações, a mesma estrutura e o mesmo modelo, mas o resultado seria algo totalmente novo e ainda mais especial." (A DICA É DE HUGO ALBUQUERQUE)

Maysa - Série Estudos 1975 (Completo)



abril 29, 2015

"Vermelho Rubro do Céu da Boca", um curta de Sofia Federico

PICICA: "Um velho preso a lembranças do passado Uma jovem cheia de sonhos com o futuro Entre eles um rio E rosas"



Vermelho Rubro do Céu da Boca

Gênero: Ficção
Subgênero: Romance
Diretor: Sofia Federico
Elenco: Bertho Filho, Flávia Marco Antonio, Frieda Gutmann, Paulo César Pereio
Duração: 18 min     Ano: 2005     Formato: 35mm
País: Brasil     Local de Produção: BA
Cor: Colorido
Sinopse: Um velho preso a lembranças do passado Uma jovem cheIa de sonhos com o futuro Entre eles um rio E rosas
  
Fonte: Porta Curtas

O Tempo Não-Reconciliado – Peter Pál Pelbart (Territórios de Filosofia)

PICICA: "Ts’ui Pen é o governador de uma província chinesa, douto em astronomia, astrologia, livros canónicos, além de enxadrista, poeta e calígrafo. Borges conta que ele renunciou aos prazeres “da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição” a fim de compor um livro e um labirinto. Com tal propósito enclausurou-se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua morte, no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e nenhum labirinto. O sinólogo Stephen Albert assim resume sua hipótese a respeito: “Ts’ui Pen teria dito uma vez: ‘Retiro-me para escrever um livro’. E outra: ‘Retiro-me para construir um labirinto’. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto” [l]. Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta, em que Ts’ui Pen escrevia:  “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam”. “Quase de imediato”, refere Albert, “compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase ‘vários futuros (não a todos)’ sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance” . As variações a que eram submetidos os relatos de Ts’ui Pen não constituíam o capricho ocioso de um romancista menor, nem um experimento teórico mundano, mas respondiam a uma inquietação metafísica, a uma questão filosófica maior que o ocupara ao longo de toda sua vida: o abismal problema do tempo.

Eis como Albert o explica a um interlocutor ilustre, descendente de Ts’ui Pen: “O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. […] O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo”.

Podemos deixar o relato de Borges seguir seu curso para apresentar nossa hipótese descabelada: o metafísico Ts’ui Pen é um precursor do patafísico Gilles Deleuze. Isto no nosso tempo. Num outro tempo é o inverso: Gilles Deleuze é o precursor de Ts’ui Pen.[2] Peço indulgência pelos parcos dados biográficos de que disponho para a comprovação dessa tese, o que, espero, deverá ser compensado pelas provas teóricas ulteriores. Seria preciso lançar mão, inicialmente, dos fragmentos reportados pelo lexicógrafo grego Suidas, do século X, e que alguns modernos chamam de André Bernold. Em sua compilação sobre a vida e doutrina de filósofos ilustres ou esquecidos, duas páginas preciosas, embora obscuras, são dedicadas a Deleuze [3]. Nelas consta que alguns o situavam entre os físicos, outros o consideravam médico, ou geólogo, ou descobridor da pulsação das espirais, ou especialista incompreendido em estratégia etc. O detalhe mais anedótico vem de Ateneu: a voz de Deleuze era comparável a um ralador, ou a uma enxurrada de pedregulhos. Mas o essencial está na conclusão dessa nota biográfica, diante da qual o leitor reage com assombro: “Houve uma multidão de outros Deleuzes”. É grande a tentação de pedir ao doxógrafo tão desprovido de senso crítico algum mínimo esclarecimento: terá havido uma multidão de outros Deleuzes ao mesmo tempo, ou em tempos diferentes e sucessivos? Foram eles contraditórios entre si? Ou apenas incompossíveis, isto é, possíveis porém em mundos distintos? Se eram incompossíveis e não obstante coexistiram, que espécie de mundo aberrante os terá acolhido a todos?" 

O Tempo Não-Reconciliado – Peter Pál Pelbart


O TEMPO NÃO-RECONCILIADO.
Peter Pál Pelbart.*

Ts’ui Pen é o governador de uma província chinesa, douto em astronomia, astrologia, livros canónicos, além de enxadrista, poeta e calígrafo. Borges conta que ele renunciou aos prazeres “da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição” a fim de compor um livro e um labirinto. Com tal propósito enclausurou-se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua morte, no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e nenhum labirinto. O sinólogo Stephen Albert assim resume sua hipótese a respeito: “Ts’ui Pen teria dito uma vez: ‘Retiro-me para escrever um livro’. E outra: ‘Retiro-me para construir um labirinto’. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto” [l]. Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta, em que Ts’ui Pen escrevia:  “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam”. “Quase de imediato”, refere Albert, “compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase ‘vários futuros (não a todos)’ sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance” . As variações a que eram submetidos os relatos de Ts’ui Pen não constituíam o capricho ocioso de um romancista menor, nem um experimento teórico mundano, mas respondiam a uma inquietação metafísica, a uma questão filosófica maior que o ocupara ao longo de toda sua vida: o abismal problema do tempo.

Eis como Albert o explica a um interlocutor ilustre, descendente de Ts’ui Pen: “O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. […] O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo”.

Podemos deixar o relato de Borges seguir seu curso para apresentar nossa hipótese descabelada: o metafísico Ts’ui Pen é um precursor do patafísico Gilles Deleuze. Isto no nosso tempo. Num outro tempo é o inverso: Gilles Deleuze é o precursor de Ts’ui Pen.[2] Peço indulgência pelos parcos dados biográficos de que disponho para a comprovação dessa tese, o que, espero, deverá ser compensado pelas provas teóricas ulteriores. Seria preciso lançar mão, inicialmente, dos fragmentos reportados pelo lexicógrafo grego Suidas, do século X, e que alguns modernos chamam de André Bernold. Em sua compilação sobre a vida e doutrina de filósofos ilustres ou esquecidos, duas páginas preciosas, embora obscuras, são dedicadas a Deleuze [3]. Nelas consta que alguns o situavam entre os físicos, outros o consideravam médico, ou geólogo, ou descobridor da pulsação das espirais, ou especialista incompreendido em estratégia etc. O detalhe mais anedótico vem de Ateneu: a voz de Deleuze era comparável a um ralador, ou a uma enxurrada de pedregulhos. Mas o essencial está na conclusão dessa nota biográfica, diante da qual o leitor reage com assombro: “Houve uma multidão de outros Deleuzes”. É grande a tentação de pedir ao doxógrafo tão desprovido de senso crítico algum mínimo esclarecimento: terá havido uma multidão de outros Deleuzes ao mesmo tempo, ou em tempos diferentes e sucessivos? Foram eles contraditórios entre si? Ou apenas incompossíveis, isto é, possíveis porém em mundos distintos? Se eram incompossíveis e não obstante coexistiram, que espécie de mundo aberrante os terá acolhido a todos?

DELEUZE TS’UI PEN

Deleuze Ts’ui Pen trancafiou-se por anos no Pavilhão da Multitudinária Mestiçagem. Teria dito uma vez: “Retiro-me para escrever um livro”. E outra: “Retiro-me para construir um labirinto”. O pouco recuo de que dispomos ainda hoje nos leva a suspeitar, inspirados na perspicácia do sinólogo Albert, que o que o vulgo imagina serem duas obras diferentesc onstitui, de fato, uma só. E, tal como no caso de Ts’ui Pen, a arquitetura labiríntica de alguns dos textos do filósofo parece responder não a um capricho de literato, ou a um experimento mundano, porém, a uma inquietação constante raramente explicitada, como se fosse por demais abismal para poder ser exposta numa forma outra que não a da charada, da alusão ou do anúncio.

Um pouco como Zaratustra, ao anunciar de forma tão alusiva e enviesada sua idéia do eterno retorno, que o próprio Deleuze pretende ter explicitado.


Deleuze Ts’ui Pen, diferentemente de Newton e Schopenhauer, não acreditava num tempo uniforme, absoluto, porém, em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades. Cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as outras, opta por todas – isto é, cria múltiplos futuros, diversos tempos que também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas disparatadas. O filósofo Deleuze Ts’ui Pen fez ressoarem e igualmente destoarem a multidão dos outros Deleuzes cuja existência o lexicógrafo Suidas reporta. É preciso, dizia Deleuze, recusar a regra de Leibniz segundo a qual os mundos possíveis não podem ser trazidos à existência caso sejam incompossíveis com aquele que Deus escolhe. Cabe afirmar os incompossíveis num mesmo mundo estilhaçados. [4]

Não podemos deixar de ver aí, pressuposta e entrelaçada, uma curiosa tese sobre a multiplicidade temporal. Seu indício primeiro, em Deleuze, são os inúmeros tempos que operam em sua obra, nem sempre compatíveis entre si, como se a inspiração borgeana atravessasse não só esse obscuro objeto filosófico, mas também e sobretudo sua própria elaboração e feitura.

Eis alguns dos fragmentos que compõem o bizarro mosaico deleuzeano do tempo, com suas respectivas colorações: o presente como síntese passiva sub-representativa, ou contemplação contraente (Plotino, Hume); o passado como Memória ontológica, Memória-mundo, Cone Virtual (Bergson); o futuro como retorno seletivo que rejeita Sujeito, Memória, Hábito (Nietzsche); a oposição Aion/Cronos (estóicos); o tempo do Acontecimento (Péguy, Blanchot); o Intempestivo (Nietzsche); o tempo como “defasagem” (Simondon); a Cesura e um tempo que já não “rima” (Hölderlin); o tempo perplicado, o tempo puro ou reencontrado da arte (Plotino, Proust); o tempo liberado de sua subordinação ao movimento (Kant versus Aristóteles); o tempo como Diferença, ou como Outro (Platão contra Platão); o tempo como Potência, não como Finitude (Bergson versus Heidegger); o tempo como Fora (Blanchot, Foucault).

Desses poucos tempos ou conceitos de tempo que se desdobram em cascata vertiginosa ao longo dos livros de Deleuze, irrigando-os de ponta a ponta, algumas incoerências saltam à vista e parecem estilhaçar a obra, que no entanto simultaneamente os afirma. As bifurcações maiores suscitam no leitor a pergunta: mas, afinal, Deleuze concebe o tempo como contração ou como cisão? como dobra ou desdobra? como um transcendental ou como o virtual? Trata-se de um tempo puro e vazio, ou de um tempo ontológico, pleno de pontos singulares? Tempo reto ou rizomático? Tempo como interioridade ou como exterioridade? Tempo como Todo ou como Fora? Tempo como Forma ou como Potência?

A DRAMATIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA

As teses maiores de Deleuze sobre o tempo reaparecem de maneira dramatizada em seus livros de cinema, onde conquistaram uma operacionalidade estética que as ilumina em seu conjunto “encadeado”. Tomemos a idéia mais enigmática que organiza esses livros, o tema da emancipação do tempo. “The time is out of joint”, exclama Hamlet. O tempo está fora dos gonzos! O que significa o tempo saído dos eixos, devolvido a si mesmo, o tempo puro e liberada? Ê um tempo liderado do movimento, isto é, do movimento centrado em torno de seu eixo e encadeado e direcionado conforme a sucessão de seus presentes encaixados. Deleuze alude então a um tempo liberado da tirania do presente que antes o envergava, e disponível, doravante, às mais excêntricas aventuras. Como diz Bruno Schulz em outro contexto, o tempo é um elemento desordenado que só se mantém em disciplina graças a um incessante cultivo, a um cuidado, a um controle, a uma correção dos seus excessos. “Privado dessa assistência, ele fica imediatamente propenso a transgressões, a uma aberração selvagem, a travessuras irresponsáveis, a uma palhaçada amorfa.” [5] Schulz lembra que carregamos uma carga extranumerária que não cabe no trem dos eventos e no tempo de dois trilhos que o suporta. Para esse contrabando precioso, chamado por ele de Acontecimento, existem as tais faixas laterais do tempo, desvios cegos, onde ficam “suspensos no ar, errantes, sem lar”, num entremeado multilinear, sem “antes” nem “depois”, nem “simultaneamente”, nem “por conseguinte”, o mais remoto murmúrio e o mais longínquo futuro comunicando-se num início virginal. Assim, no seio do tempo contínuo dos presentes encadeados (cronos) insinua-se constantemente o tempo amorfo do Acontecimento (aion), na sua lógica não dialética, impessoal, impassível, incorpórea: “a pura reserva”, virtualidade pura que não pára de sobrevir.

A esse propósito Deleuze salienta um procedimento cinematográfico que consiste em desvincular as pontas de presente de sua própria atualidade, subordinando esse presente a um acontecimento que o atravessa e o transborda, no qual justamente não há mais passado, presente, futuro, enrolados que estão no acontecimento “simultâneo, inexplicável”. No Acontecimento coexistem as pontas de presente desatualizadas, ou ainda um mesmo acontecimento se distribui em mundos distintos segundo tempos diferentes, de modo que, o que para um é passado, para outro é presente, para um terceiro é futuro – mas é o mesmo acontecimento (O ano passado em Marienband). Tempo sideral ou sistema da relatividade, diz Deleuze, porque inclui uma cosmologia pluralista, no qual um mesmo acontecimento se distribui, em versões incompatíveis, em uma pluralidade de mundos. Eis não um deus que escolhe o melhor dos mundos possíveis, mas um Processo que passa por todos eles, afirmando-os “simultaneamente”. É um sistema de variação: dado um acontecimento, não rebatê-lo sobre um presente que o atualiza, mas fazê-lo variar em diversos presentes pertencentes a  mundos distintos, embora num certo sentido, mais genérico, eles pertençam a um mesmo mundo estilhaçado. Ou, dado um presente, não esgotá-lo nele mesmo, encontrar nele o acontecimento pelo qual ele
se comunica com outros presentes em outros mundos, mergulhar a montante no acontecimento comum em que estão implicados todos: o Emaranhado Virtual.


Supõe-se aí uma gigantesca Memória ontológica, constituída por lençóis ou jazidas de passado, espécies de estratos, que se comunicam entre si para afunilar-se, exercendo pressão sobre uma ponta de presente. Alguns personagens de Resnais, por exemplo, passando de um estrato a outro, passeando entre os níveis, atravessando idades do mundo, transversalizando o Tempo ou recriando a cada vez as distâncias e proximidades entre os diversos pontos singulares de suas vidas. Para ficar numa imagem cômoda, o tempo como um lenço: a cada vez que assoamos o nariz, nós o enfiamos no bolso, amarrotando-o de maneira distinta, de forma que dois pontos do lenço que antes estavam distantes e não se tocavam (como dois momentos da vida, longínquos segundo uma linha do tempo) agora tornam-se contíguos, ou mesmo coincidem, ou, ao contrário, dois pontos em princípio vizinhos agora se afastam irremediavelmente. Como se o tempo fosse uma grande massa de argila, que a cada modelagem rearranja as distâncias entre os pontos nela assinalados. Curiosa tipologia em que assistimos a uma transformação incessante, modulação, que reinventa e faz variar as relações entre os vários lençóis e seus pontos cintilantes, cada rearranjo criando algo novo, memória plástica, sempre refeita, sempre por vir. Massa do tempo modelável, ou melhor, modulável, e sobre a qual Deleuze chega até a exclamar, como um Cristóvão Colombo: é a Terra, meio vital lamacento! Quando o cinema se embrenha nessa ordem de coexistência virtual ele inventa seus lençóis paradoxais, hipnóticos, alucinatórios, indecidíveis. Nesse filão bergsoniano, a memória deixa dc ser uma faculdade interior ao homem, é o homem que habita o interior de uma vasta Memória, Memória-Mundo, gigantesco cone invertido, multiplicidade virtual da qual somos um grau determinado de distensão ou contração. O filósofo e o porco, como numa metempsicose, retomam o mesmo cone, a mesma vida em níveis distintos, graceja Deleuze.

O tempo passa então a ser concebido não mais como linha, mas como emaranhado, não como rio, mas como terra, não fluxo, e sim massa, não sucessão, porém coexistência, não um círculo, mas turbilhão, não ordem, e sim variação infinita, de modo que não se trata mais de remetê-lo a uma consciência – a consciência do tempo -, mas à alucinação. Enlouquecimento desse tempo fora dos eixos, não sem relação com o tempo daqueles que, fora dos eixos, são ditos loucos.

TEMPO E LOUCURA

Sempre que fala do tempo, Deleuze evoca um desregramento: tempo descentrado, aberrante, selvagem, paradoxal, flutuante, ou mesmo afundado. Não parece abusivo considerar que o enlouquecimento do tempo tal como Deleuze o trabalha comunica-se diretamente com a temporalidade da loucura dita “clínica”. Enquanto isso, em contrapartida, boa parte da literatura sobre as psicoses se vê inteiramente desarmada diante das múltiplas figuras temporais que proliferam a olhos vistos na clínica, e que as teorias “psi” têm dificuldade em abarcar, tendo em vista uma normatividade temporal da qual são necessariamente prisioneiras. É muito raro que se pense a temporalidade da psicose por um viés outro, não sob o modo privativo. Mesmo na abordagem fenomenológica ou existencial das psicoses, desde Minkowski até Maldiney, passando por Binswanger ou Jaspers, apesar do inegável interesse descritivo que ela apresenta, nela a multiplicidade constatada acaba sendo referida a uma modalidade pressuposta como ideal, priorizando-se, por exemplo, certas estruturas de estar-no-mundo, a transcendência, a antecipação, o prometo,a partir de um presente originário etc. Mas também no interior da literatura estritamente psicanalítica, com raras exceções, a não-unicidade da experiência temporal psicótica é subsumida à sua futuração malograda, na forma das representações atemporais. [6] De modo que há uma iminência caótica que é recusada em nome de um alhures significante precisamente não assumível pelo psicótico. Enfim, toda uma apologia da historicização, cujo ponto de apoio é o eu historiador, como diria Piera Aulagnier. Assim, de algum modo a temporalidade acaba sendo identificada à historicização. Com tudo o que essa perspectiva possa apresentar de interessante, ou útil, e até de necessária na clínica, ela tem o inconveniente de dificultar o acolhimento dos devires na psicose. A reflexão de Deleuze e Guattari, ao contrapor os devires à história, poderia ajudar a repensar essa heterogeneidade temporal da psicose que tanto desafia o tempo da razão, mesmo psicanalítica.
Deleuze o diz claramente: a História é um marcador temporal do Poder[7]. As pessoas sonham em começar ou recomeçar do zero, e também temem aonde vão chegar, ou cair. Sempre buscamos a origem ou o desfecho de uma vida, num vício cartográfico, mas desdenhamos o meio, que é uma antimemória, que é onde se atinge a maior velocidade. Esse meio é justamente onde os mais diferentes tempos se comunicam e se cruzam, onde está o movimento, a velocidade, o devir, o turbilhão, diz Deleuze literalmente [8]. E a pergunta que se impõe é simples: de que figura temporal dispomos para pensar esse meio turbilhonar, ou a desterritorialização como primeira, ou a multiplicidade virtual? De qualquer modo, não deveria deixar de intrigar-nos o fato de que certos fenómenos de perturbação psíquica expõem, mais do que quaisquer outros, a virtualidade pura enquanto virtualidade, descolada precisamente de qualquer atualização centrada ou orientada, abrindo-se para incongruências temporais diversas, que também o cinema, a seu modo, não cansou de explorar desde o seu início.

IMAGENS DE TEMPO

O cinema teria servido a Deleuze, como sugerimos acima, para revelar determinadas condutas do tempo, dando delas imagens diversas, evolutivas, circulares, espiraladas, declinantes, quebradas, salvadoras, desembestadas, ilocalizadas, multivetoriais. Tempo como bifurcação, defasagem, jorramento, oscilação, cisão, modulação etc. E plausível presumir que o interesse que Deleuze lhe dedicou venha de uma determinação mais radical que ele mesmo deixou entrever, ao salientar a ambição do cinema de penetrar, apreender e reproduzir o próprio pensamento. O pensamento e o tempo estariam assim, desde logo, numa relação de co-pertinência indissolúvel. Com efeito, o que se depreende dos textos de Deleuze a respeito do tempo é que o próprio pensamento não poderia permanecer alheio ao projeto de liberar-se de uma certa idéia de tempo que o formatou, bem como do eixo que o encurva. Nesse sentido, a exclamação enigmática de  Hamlet sobre o tempo que sai dos eixos vai de par com a exigência de um pensamento fora dos eixos, isto é, de um pensamento que deixasse de girar em torno do Mesmo.

Assim, como critica uma imagem do pensamento dita dogmática, Deleuze fustiga uma imagem de tempo hegemônica. Ao reivindicar um pensamento sem imagem, para que possam advir outras imagens ao pensamento, Deleuze também reclama um tempo sem imagem, para que se liberem outras imagens de tempo. A imagem do pensamento dita dogmática é bem conhecida: ela é explorada desde Nietzsche e a filosofia até O que é a filosofia?. Mas qual seria a imagem de tempo hegemónica recusada por Deleuze? Para irmos rápido, diremos: é a do tempo como círculo. Não se trata propriamente de um tempo circular, mas do círculo como uma estrutura profunda, em que o tempo se reconcilia consigo mesmo, em que começo e fim rimam, como diz Hõlderlin. O que caracteriza o círculo é sua monocentragem em torno do Presente, de seu Movimento encadeado e orientado, bem como sua totalização subjacente. O círculo, com seu centro, metáfora do Mesmo. E, ainda que o Presente se situe num passado remoto e nostálgico, ou num futuro escatológico, nem por isso deixa de continuar funcionando como eixo que encurva o tempo, em torno do qual ele gira, redesenhandoo círculo do qual pensávamos ter escapado. Trata-se aí, em última instância, ainda e sempre, do tempo da Re-presentação.

Ao tempo como Círculo, Deleuze contrapõe o tempo como Rizoma. Não mais Identidade reencontrada, mas Multiplicidade aberta. A lógica da multiplicidade foi exposta e trabalhada, entre outros textos, na descrição do rizoma em Mil Platôs. Num rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquero outro, ele é feito de direções móveis, sem início ou fim, tendo apenas um meio, por onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar, sem sujeito nem objeto. O que vem a ser o tempo, quando ele passa a ser pensado enquanto multiplicidade pura ou operando numa multiplicidade pura? O rizoma temporal não tem um sentido (o sentido da flecha do tempo, o bom sentido, o sentido do bom senso, que vai do mais diferenciado ao menos diferenciado), nem reencontra uma totalidade prévia que, abolindo-se, ele se encarregaria de explicitar no Conceito. Ele não possui um sentido e é alheio a qualquer teleologia.

Mas será esta a última palavra de Deleuze a respeito do tempo? Pois essa multiplicidade virtual é como que arada e remexida em todos os seus pontos, em toda sua extensão, não mais por um Círculo, que o autor recusa, mas pelo que se poderia chamar – e a expressão já está no Timeu de Platão – de um Círculo do Outro. Um círculo cujo centro é o Outro, este outro que jamais pode ser centro precisamente porque é sempre outro: círculo descentrado. É a figura que melhor convém à leitura original que Deleuze faz de Nietzsche: na repetição retorna apenas o não-Mesmo, o Desigual, o Outro – Ser do Devir, Eterno Retorno da Diferença.

Pode-se chamar esse Outro de Futuro (a repetição régia é a do futuro, diz Diferença e repetição). Mas, se há em Deleuze, como em Heidegger, um privilégio do futuro, ele não é deduzível de uma problemática da Finitude, e sim da Obra, que rejeita seus andaimes, Hábito, Memória, Agente. O futuro não é, para o homem, uma antecipação de seu próprio fim, de sua própria morte, a possibilidade extrema de seu ser, nada que se aparente a um ser-para-a-morte, já que não é a partir da ipseidade que ele pode ser pensado, mas de um fluxo proto-ôntico. Se na elaboração desse futuro por Deleuze o Aberto é uma referência importante, ela aí remete ao Fora, mais do que ao Ser. Digamos que o Aberto de Deleuze está mais para Blanchot do que para Heidegger. É sob o signo da Exterioridade, portanto, que o pensamento pode ganhar uma determinação de futuro.

Mas seria preciso acolher todas as implicações de uma tal idéia.Poderíamos começar por onde elas aparecem do modo mais palpável, mais imagético, isto é, pelo cinema. Se desde a origem ele promove movimentos aberrantes que descentram a percepção, mudando a escala, a proporção, a aceleração, a direção, tirando o próprio movimento de seu eixo, o cinema também compensa essas aberrações através da montagem, conjurando-as, reabsorvendo-as, amortecendo-as. Mas chega um momento em que essa ordenação e essa normalidade do movimento entram em crise, de modo que o movimento perde seu eixo, seu ponto de gravidade, sua motricidade, e a relação orgânica entre os movimentos se desmancha, o encadeamento sensório-motor se desfaz na crença na continuidade do mundo se perde, porque um certo mundo também desmoronou. O que significa essa crise, mais radicalmente? Não só que a organicidade da ação no mundo desfez-se, mas que o mundo como organicidade e totalidade foram abalados. Na esteira de um tal terremoto, surgem encadeamentos fracos entre as situações, elos frouxos entre os espaços, aumenta a função do acaso, emerge uma realidade dispersiva, os personagens flutuam em meio às situações, desfaz-se a intriga, a história, a ação. Já fica mais difícil dar uma imagem do Todo do tempo, orgânica, dialética, espiralada, porque o que se esboroou foi a representação indireta do tempo que a imagem-movimento fornecia.

O movimento aberrante, em contrapartida, vai apresentar o tempo diretamente, diz Deleuze, do fundo da desproporção das escalas, como em Orson Welles, da dissipação dos centros, dos falsos raccords. O próprio interstício entre as imagens se libera, de modo que o cinema deixará de ser o cinema do Uno, que por associação de imagens (montagem) visa o Todo do Tempo, para instalar-se no interstício, entre as imagens. O Tempo não mais como Ser, mas como Entre, não mais regido pela forma verbal É, mas pela conjunção E, escavação do Fora.

O cinema moderno coloca em xeque constantemente, através de seu regime, o curso empírico do tempo. Na sua busca do transcendental, isto é, da forma do tempo, acaba sendo aspirado pela idéia de um Fora mais exterior que qualquer exterior, mais interior que qualquer interior, matéria-prima do tempo. A chave desse desenlace pode ser resumida pela frase que caracteriza a filosofia de Deleuze como um todo: “0 específico de uma pesquisa transcendental consiste em não podermos detê-la quando queremos. Como é que poderíamos determinar um fundamento, sem sermos precipitados para além, no sem-fundo de que ele emerge?”[9]

IMAGEM DO TEMPO, IMAGEM DO PENSAMENTO

Como já se disse, a crítica de Deleuze a uma imagem do pensamento dita dogmática é feita em nome de um pensamento sem imagem. Ora, isso significa que o pensamento, sem um Modelo prévio do que seja pensar (por exemplo: pensar é buscar a verdade), abre-se a outras aventuras (por exemplo: pensar é criar). Tudo muda de um para outro. Deleuze diz que são dois planos de imanência diferentes, o clássico e o moderno, o da vontade de verdade, por um lado, e o da criação, por outro. [10] E cada um deles é inseparável de um certo conceito de tempo que o preenche. Por exemplo, no plano de imanência clássico, do pensamento como busca da verdade, Deleuze assinala três momentor distintos: tempo como interioridade (na reminiscência platônica, a verdade pressuposta corno imagem virtual de um já pensado que redobra todo conceito), tempo como instantaneidade (no inatismo cartesiano, o tempo é expulso do conceito: entre a ideia e a alma que a forma enquanto sujeito, toda distância temporal é anulada), tempo como forma da interioridade (o tempo reintroduzido por Kant no sujeito, e cindindo-o). Temos assim, em poucas linhas de O que é a filosofia?, uma nova história do tempo – anterioridade, instantaneidade, interioridade, ou melhor, reminiscência, inatismo, a priori, três conceitos de tempo. O tempo posto no conceito, o tempo expulso do Cogito, o tempo reintroduzido no sujeito, mas como fissura ou variação. No contexto em que são retomados, parecem indicar que a idéia de tempo de cada filósofo é índice do plano de imanência que ele erigiu, ou sobre o qual se instalou. Assim, se esses três momentos correspondem ao plano de imanência clássico (o pensamento como busca da verdade), o plano de imanência moderno (o pensamento como criação) pede um outro conceito de tempo, a determinar. Não seria o caso de supor que uma filosofia da diferença, tal como a de Deleuze, deu-se por tarefa preencher esse plano de imanência moderno com um conceito de tempo próprio a um pensamento definido como criação, e não mais como vontade de verdade?

O tempo, então – não mais como anterioridade, instantaneidade, interioridade, mas como exterioridade pura -, é a reversão inaudita a que nos convida Deleuze. O tempo como Fora sob a condição da dobra. E o gesto que Deleuze atribuiu com amizade a Foucault, muito embora deva ser considerado a aposta extrema de seu próprio pensamento: “Durante muito tempo, Foucault pensou o fora como uma última espacialidade mais profunda que o tempo; foram suas últimas obras que lhe permitiram uma possibilidade de colocar o tempo no fora e de pensar o fora como tempo, sob a condição da dobra” [11]. É apenas num tempo saído dos gonzos e assim devolvido ao Fora que as tantas imagens de tempo inassimiláveis, recorrentes ao longo da obra de Deleuze, podem ganhar seu verdadeiro alcance: elas correspondem a outras tantas dobras, Acontecimentos novos e Subjetivações por vir.

A teorização deleuzeana do tempo, apesar de suas inúmeras obscuridades, teria por função, então, pensar um tempo consentâneo à força do novo. Se há aí uma fidelidade profunda ao projeto bergsoniano, ela só pode ser levada a bom termo quando, com Nietzsche, o tempo for alçado à sua potência última, ao fazer retornar… a diferença. Só o eterno retorno seletivo, afetando o novo, igualando-se ao Desigual em si, só o Tempo como Diferença pode inaugurar com o Futuro, descontínuo e disruptivo, uma relação de excesso, a exemplo da Obra ou do Além-do-homem, para o qual nem Z aratustra está maduro e que no entanto ele anuncia. O futuro como o incondicionado que o instante afirma – é o que Nietzsche teria chamado de Intempestivo e cuja importância Deleuze não cessa de ressaltar.

Se Michel Serres tem razão em atribuir à filosofia a função de “inventar as condições da invenção”, é preciso acrescentar que, no contexto que nos ocupa, isso significaria também e sobretudo reinventar as condições da invenção de outros tempos que não os já consagrados pela história. Trata-se, no limite, de desfazer a solidariedade entre Tempo e História, com todas as implicações éticas, políticas e estratégicas de uma tal ambição. Ao pensar as multiplicidades substantivas e os processos que nela operam, aí desentocando temporalidades as mais inusitadas, no arco que vai do Intempestivo até o Acontecimento, não terá Deleuze dado voz àqueles que, como diz ele num eco benjaminiano, “a História não leva em conta”[12]? Não se trata, evidentemente, só dos oprimidos ou das minorias, embora sempre se trate deles também, mas dos devires-minoritários de todos e de cada um: não exatamente o povo, mas “o povo que falta”, o povo por vir.

Notas.

1. J. L. Borges, “0 jardim dos caminhos que se bifurcam”, Ficções, trad. Carlos Negar, Porto Alegre, Globo, 1970, p. 78.

2. Paráfrase de nota de rodapé de José Gil, em seu Fernando Pessoa ou La métaphysique des sensations: “Tendo a leitura de Pessoa feito surgir, uns depois dos outros, os temas deleuzeanos […] uma convicção inabalável se formou: Fernando Pessoa leu Deleuze! O inverso não se verificou [….]”. Paris, La Différence,
1988, P. 73.


3. Philosophie, nº 47, 1995, pp. 8-9.

4. G. Deleuze, A Dobra, trad. Luiz B. L. Orlandi, Campinas, Papirus, 1991, p. 105 [no original, p. 90].

5. Schulz, O Sanatório, ad. H. Siewierski, Rio de Janeiro, Imago, 1994, p. 172.

6. Seria preciso citar uma exceção recente e notável, de Sylvie Le Poulichet, L’oeuvre du temps en pysichanalyse, Paris, Payot &: Rivages, 1994.

7. G. Deleuze e C. Bene, Superposittions, Paras, Minuit, 1980, p. 103.

8. Idem, pp. 95-6.

9. G. Deleuze, Apresentação de Sacher-Masoch, trad. José Martins Garcia, como Sacher-Masoch, Lisboa, Assírio & Alvim, 1973, p. 124 [p. 98].

10. G . Deleuze e F. Guattari, O que é a filosofia?,t rad. Bento Prado Jr. e Alberto Afonso Muñoz, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 55 [p. 73].

11. G. Deleuze, Foucault, trad. Cláudia Sant’Anna Martins, São Pauta, Brasiliense, 1988, p. 115 [p. 115].

12. Deleuze, Superposittions, p. 127.

*Originalmente publicado em: PELBART, Peter Pál. O Tempo Não-Reconciliado. in: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: Uma Vida Filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000.

Fonte: Territórios de Filosofia

Trotski/Leminski: o revolucionário e o poeta, por Cynara Menezes (OUTROS LIVROS)

PICICA: "Esse é o tipo de livro que é impossível entender como pode estar fora de catálogo. E pior: como não está sendo indicado nas escolas para que os estudantes conheçam a história da Revolução Russa contada –surpresa!– por um de nossos maiores poetas, o curitibano Paulo Leminski (1944-1989). Leminski admirava Trotski e escreveu alguns poemas e textos sobre o revolucionário russo e também sobre a Libelu (Liberdade e Luta), tendência trotskista do movimento estudantil nos anos 1970.

Mas o que pouca gente sabe é que Leminski é o autor de uma biografia de Leon Trotski em português, A Paixão Segundo a Revolução, publicada pela editora Brasiliense em 1988. Dois anos depois, em 1990, o texto sairia postumamente em Vida (editora Sulina), uma coletânea dos perfis de Leminski, que retratou, além de Trotski, o mestre dos haicais Basho, Jesus e o poeta Cruz e Sousa, raridade que hoje não sai por menos de 100 reais se você encontrar num sebo."

Trotski/Leminski: o revolucionário e o poeta

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Por Cynara Menezes, publicado originalmente no excelente blog Socialista Morena.

Esse é o tipo de livro que é impossível entender como pode estar fora de catálogo. E pior: como não está sendo indicado nas escolas para que os estudantes conheçam a história da Revolução Russa contada –surpresa!– por um de nossos maiores poetas, o curitibano Paulo Leminski (1944-1989). Leminski admirava Trotski e escreveu alguns poemas e textos sobre o revolucionário russo e também sobre a Libelu (Liberdade e Luta), tendência trotskista do movimento estudantil nos anos 1970.

Mas o que pouca gente sabe é que Leminski é o autor de uma biografia de Leon Trotski em português, A Paixão Segundo a Revolução, publicada pela editora Brasiliense em 1988. Dois anos depois, em 1990, o texto sairia postumamente em Vida (editora Sulina), uma coletânea dos perfis de Leminski, que retratou, além de Trotski, o mestre dos haicais Basho, Jesus e o poeta Cruz e Sousa, raridade que hoje não sai por menos de 100 reais se você encontrar num sebo.

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A biografia de Trotski que Leminski escreveu é saborosíssima porque, para começar, é feita para iniciados. Qualquer jovem entenderia – o poeta, aliás, revela nas dedicatórias que escreveu inspirado por uma pergunta da filha de 15 anos sobre o que tinha sido a Revolução Russa. Leminski não se atém ao biografado, remonta às origens da Rússia desde a invasão pelos mongóis, no século 13. Irônico, divertido, o livro captura o leitor imediatamente.

De modo fascinante, Leminski compara o que aconteceu em outubro de 1917 ao enredo de Irmãos Karamazov, o clássico de Dostoievski. O pai castrador é a Rússia e seu czar “cretino e irresponsável, tão incapaz quanto Luís 16, decapitado na Revolução Francesa”. Seus filhos Dmitri, Aliocha e Ivan são os revolucionários. Mesmo sendo um admirador, Leminski mantém o distanciamento crítico e aponta o excesso de vaidade como o principal defeito de Trotski. Entusiasta da revolução, também enxerga suas fraquezas, sobretudo nas artes. E não esconde o desprezo por Stalin.

É uma pena que Leminski não esteja mais entre nós para continuar o livro após a Perestroika e a Glasnost na União Soviética e a queda do muro de Berlim… Mas é urgente que, revisto, volte às livrarias. É genial. Não pode continuar esquecido.

Abaixo, um trecho do capítulo Dmitri da biografia de Trotski por Leminski.

Leon Trotski: a Paixão Segundo a Revolução

Por Paulo Leminski

Na estratégia e na tática de ação política, a inteligência de Lenin supera em muito a de Trotski, mais hesitante, mais sujeita a erros e leituras equivocadas dos fatos.

Mas a máquina mental e intelectual de Trotski era mais complexa que a de Lenin. Seus interesses eram mais plurais. Suas leituras, mais diversificadas. Seu horizonte, muito mais amplo. Leia-se, por exemplo, o vôo utópico do final do ensaio Arte Revolucionária e Arte Socialista, capítulo oitavo do seu livro Literatura e Revolução.

Lenin jamais poderia ter escrito essas páginas de um sopro verdadeiramente épico-utópico, sobre o novo homem que o socialismo poderia criar. Nem poderia dizer, como diz Trotski, nesse mesmo livro: “a arte se fundirá com a vida, quando a vida enriquecerá em proporções tais que se modelará, inteiramente, na arte”.

Lenin sempre olhou meio de lado, desconfiado, para as manifestações de vanguarda artística que marcaram o início do comunismo na Rússia (futurismo, suprematismo, Eisenstein, Maiakovski, Meyerhold, Tatlin). Seus gostos em matéria de arte eram bem conservadores. Há testemunhos de que chorava ao ouvir oPour Élise, de Beethoven. E sua visão de cinema era pedagógica e doutrinária: bom para educar as massas.

Dessa vanguarda, Trotski, agudíssimo crítico literário, fez leituras mais ricas, como nos ensaios O Futurismo, de 1922, e O Suicídio de Maiakovski, de 1930, incluídos em Literatura e Revolução, o mais extraordinário livro sobre literatura que um político jamais escreveu.


(Diego Rivera, Trótski e André Breton no México)

Quando, já exilado no México, nos anos 30, Trotski assina um manifesto surrealista com André Breton, vindo da França para conhecê-lo, o velho leão está apenas sendo fiel a algumas das suas riquezas da juventude.

A robustez e saúde de pensamento, Trotski deve ter herdado do pai. Mas a sofisticação intelectual, que sempre o distinguiu entre os bolcheviques e lhe atraiu invejas e ódios surdos, só pode ter vindo da mãe, que era assinante de uma biblioteca de livros de empréstimo, e lia em mais de uma língua.

O que importa guardar dos primórdios de Lev Davidovitch é que Trotski teve uma infância e adolescência sem penúria, como, aliás, Lenin, filho de um funcionário público, de alguma graduação na máquina burocrática. Diverso é o caso de Stalin, filho de um pobre sapateiro do Cáucaso, o único dos chefes da Revolução de Outubro a ter origens realmente populares.

Aos sete anos, os pais de Lev Davidovitch o enviaram para uma escola judaico-alemã, a quilômetros de distância da fazenda Yanovka. Não se adaptou, e os pais o trouxeram de volta, sem que tivesse chegado a aprender nem o iídiche nem o hebraico das Escrituras. Em compensação, tinha aprendido bem o russo, ele que só falava o ucraniano dos camponeses. Ao voltar, já escrevia bem em russo, e começava a ler avidamente livros na língua oficial.

Pouco depois, pelas mãos de um parente mais velho, de nome Spentzer, vai estudar em Odessa, o maior porto do Mar Negro, uma cidade de clima quente, fervilhante de vida cosmopolita.

Na casa dos Spentzer, Lev iniciou-se numa vida intelectual muito cuidada, música clássica, hábitos polidos, leituras de clássicos russos e europeus em geral (Goethe, Pushkin, Tolstoi, Dickens).


(o jovem Lev Davidovitch)

O jovem camponês ucraniano transforma-se num judeu urbano de classe média, um europeu culto e educado.

Em Odessa, frequentou uma escola alemã, ligada à Igreja Luterana, onde estudou, entre as matérias do currículo, francês e alemão. Nessa escola, a Realschule, parece ter sido aluno excepcionalmente sério, sempre o primeiro da classe.

Já podemos ver aí os germes da vaidade intelectual que sua figura sempre irradiou, a certeza de ser mais inteligente do que os outros, de ver mais longe ou pensar mais fundo, vaidade que só se transformava em modéstia diante da figura superlativamente carismática de Lenin (e isso só depois de muita briga entre os dois…).

Em Odessa, cidade esfuziante de atrações, frequenta a ópera, como os outros estudantes, veste-se com elegância (traço que sempre o distinguiu) e apaixona-se, platonicamente, por cantoras líricas, como um poeta romântico do século 19.

Aos 17 anos, o futuro chefe da Revolução de Outubro ainda não ouviu falar de marxismo. E seu talento para a matemática o inclina a sonhar com uma carreira universitária dedicada à matemática pura.

Tais eram seus dons nesse terreno que, consta, eminentes matemáticos lamentariam depois que tamanho talento se perdesse na mediocridade da vida política: que grande talento a matemática estava perdendo…

A atividade política de Trotski, percebe-se já, não vai nascer de uma revolta contra um estado pessoal de carência.

Como em Lenin, outro bem-nascido (como Mao e Fidel), em Trotski, a revolução vai ser uma paixão intelectual, uma certeza lógica, uma convicção feita de ferro em brasa. Uma das cruéis ironias da vida: só os bem alimentados podem lutar pelos famintos. Os muito miseráveis nem sequer se revoltam: deixam-se morrer à míngua. É preciso muita proteína para fazer uma revolução.


Fonte: OUTROS LIVROS

"Internet: a sombra de um grande retrocesso". Por Rafael Evangelista (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Antes aberta, democrática e descentralizada, rede está ameaçada por novos monopólios. Facebook manipula fluxo de informações e experimenta influir no estado emocional das populações. Há saída?"

Internet: a sombra de um grande retrocesso


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Antes aberta, democrática e descentralizada, rede está ameaçada por novos monopólios. Facebook manipula fluxo de informações e experimenta influir no estado emocional das populações. Há saída?

Por Rafael Evangelista 

Todos os dias, milhões de pessoas ao redor do mundo repetem, ao acordar, o mesmo gesto: desligam o despertador do celular, ligam o wi-fi de casa, acessam as redes sociais e conferem as notícias recentes, escolhidas – literalmente – a dedo por aqueles que resolvemos “seguir”: amigos, amigos da rede, personalidades, jornalistas, formadores de opinião, colunistas, piadistas. Se o ritual não é exatamente esse, não foge muito de um roteiro comum. O café da manhã com as notícias do jornal, selecionadas no dia anterior pelo editor-chefe da renomada publicação e que congregava o que era “preciso saber” sobre o que aconteceu no mundo, vai sendo substituído. A seleção, por um lado, é mais distribuída (democrática?) e bebe das fontes mais diversas, confiáveis ou não. Por outro, não obedece a uma ordenação visível, equilibrada ou, aparentemente, lógica. É feita de acordo com o leitor, de acordo com sua ficha no sistema ou com algo derivado disso, relacionado ao perfil, gostos ou interesses das pessoas ou instituições a que está conectado como amigo, seguidor ou qualquer que seja a palavra que a rede social escolhe para designar a ligação entre perfis.

Essa, porém, é somente a versão mais simples da situação, do novo cenário que marca o nosso consumo de notícias, informação e cultura, a relação mediada que estabelecemos com o mundo, com a realidade, via meios de comunicação. Nessa relação, o jornalismo está incluído, mas é apenas uma parte do conjunto de produções informacionais que nos é entregue diariamente pelo mesmo canal, ou por um conjunto de canais/redes sociais a partir dos quais somos indicados a que vídeos ver, que música ouvir, que notícias e opiniões consumir. Como uma televisão de programação fragmentada, onde a fronteira entre ficção e realidade é borrada freneticamente.
As questões mais visíveis que se colocam aí – falaremos também de outras, subterrâneas – dizem respeito a como se tornou emergente a seleção do que nos é apresentado. Por emergente entende-se algo que não obedece, a priori, um comando total centralizado, um indivíduo ou um conjunto determinado de indivíduos que escolhe soberanamente o que vai estar na capa e nas folhas internas do jornal. A escolha passa a se dar “de baixo para cima”, derivada de uma interação, que varia de acordo com cada usuário, entre os diversos pontos da rede. O “jornal” que leio certamente será diferente do jornal que outros leem. Talvez seja parecido com o de outros palmeirenses, da região de Campinas, interessados em tecnologia e sociedade. Ainda assim, não idêntico.

A própria ideia de jornal parece cada vez mais como algo do passado. Os veículos, sejam os jornais e revistas físicos que comprávamos na banca, sejam os grandes portais dos primeiros anos da internet, se estilhaçam. Os recebemos aos pedaços, uma matéria, uma coluna, uma charge. Continuam lá, como estrutura, ainda podemos navegar por eles. No caso dos portais, foram tornados imensos, na busca desesperada por cliques, em que tanto faz 100 cliques em 10 matérias ou 10 cliques em 100 matérias. Mas consumimos os veículos despedaçados, com o nome do jornal ou do site mais funcionando como uma referência de confiabilidade e inclinação político-editorial do que qualquer outra coisa. Uma marca, a se confiar muito, pouco ou nada.

Veículos de comunicação do mundo todo, e de todos os tamanhos, hoje dependem das redes sociais para terem seus conteúdos acessados pelo grande público. Quem está fora delas, ou não as alimenta com verbas publicitárias dos mais variados tamanhos, dificilmente alcança uma audiência relevante. Movimentos sociais, que nos últimos anos apostaram quase todas as suas fichas na mobilização via redes sociais mais famosas – afinal, todo mundo está lá – hoje estão praticamente igualados a qualquer empreendimento comercial. O Facebook, por exemplo, tem uma política ativa de eliminação de perfis que não sejam de pessoas físicas. O objetivo é fazer a separação em dois tipos de usuários/postadores de coisas: as pessoas físicas, cuja relação é dada com outras pessoas que veem seus posts mutuamente; e as pessoas jurídicas (vale qualquer uma delas, empresas, movimentos, artistas, intelectuais), que pagam para terem seu conteúdo distribuído maciçamente – quanto mais dinheiro, mais distribuição – ou ficam restritos à comunicação com uma meia dúzia de assinantes, apenas uma fração das pessoas que manifestaram ativamente quererem acompanhar os conteúdos daquela fonte.
No entanto, o mais relevante, e politicamente mais importante, é o que não sabemos sobre o modo como se dá essa distribuição de conteúdos. Os critérios subterrâneos, como dito anteriormente. Continuemos a usar o Facebook como exemplo, embora isso valha para qualquer sistema de recebimento de conteúdo via feed (linha do tempo, no caso do Facebook) governado por algoritmos. A interação entre as pessoas é intermediada por uma fórmula fechada (secreta) que estabelece critérios sobre de que “amigos” receberemos conteúdos, de quais tipos e com que frequência. Isso significa que o usuário não estabelece uma relação direta com quem segue, que não há garantias de que o que posta em seu perfil será entregue a todos os seus seguidores. Isso dependerá de razões que não conhecemos, que a princípio se relacionam com as micro-redes estabelecidas (os subconjuntos de amigos que conversam entre si), mas que são bem mais complexas do que isso e mudam ao sabor dos interesses do dono da estrutura.

A manipulação invisível


Em meados do ano passado, usuários e instituições que se preocupam com o gerenciamento da internet foram surpreendidos com a notícia de que o Facebook alterou o feed de aproximadamente 700 mil usuários para se estudar o que se chama de “contágio emocional”. Lê-se no artigo publicado sobre o estudo: “Estados emocionais podem ser transferidos a outros via contágio emocional, levando as pessoas a experimentarem as mesmas emoções sem sabê-lo. O contágio emocional é um fenômeno bem estabelecido em experimentos de laboratório, com as pessoas transferindo emoções positivas e negativas umas às outras”. O experimento ocorreu durante uma semana, em 2012, comprovando a tese sobre o contágio. Realizado pelas Universidades de Cornell e da Califórnia, nos Estados Unidos, a manipulação dos feeds desses usuários contou, como não poderia deixar de ser, com o apoio do Facebook, interessado nos resultados. Mais, ele não teria ocorrido a pedido dos pesquisadores, mas após o Facebook realizar a manipulação. Os cientistas apenas trabalharam com os dados fornecidos pela empresa. As informações são de matéria da The Atlantic, uma das primeiras a divulgar o estudo.

Embora tenha sido criticado por sua falta de ética, o estudo não fez nada ilegal, já que os termos de uso aceitos pelos usuários do Facebook permitem esse tipo de manipulação.
Além de questões óbvias envolvendo a manipulação dos usuários de redes sociais para esse tipo de experimentação, o caso traz preocupações políticas bastante claras. Segundo Susan Fiske (editora da revista que publicou o artigo, o Facebook manipula o feed de notícias de seus usuários o tempo todo. Ela teria sido informada disso pelos autores do estudo, após questioná-los sobre a ética do experimento. Isso significa que esse tipo de manipulação não é eventual e provavelmente continua sendo feita. O sentimento de humor estragado, após aquela entrada matinal no Facebook, pode não ser um acaso, uma ilusão emocional ou reflexo de que é preciso refazer sua lista de amigos. Pode estar ligado ou a algum teste, como no passado, ou a algum objetivo consciente, ainda que não público.

Para além do caso relatado, podemos imaginar um tipo de manipulação emocional mais focalizada, com impactos possivelmente maiores e consequências práticas complicadas. Os usuários das redes sociais estão ali para interagir e obter informações, seja dos amigos ou do mundo. O que capturam a partir dali, as informações que obtêm, influenciam inegavelmente em suas ações no dia a dia. O factual ainda pode ser refutado ou checado. As emoções, não. De modo diverso, elas também impactam as ações concretas, porém são menos verificáveis. Por mais que isso pareça um cenário de ficção científica é preciso pensar: e se for possível alterar o clima de confiança de uma região inteira?; que impactos políticos e econômicos isso teria?

Dos mecanismos de busca aos feeds obscuros

A questão é que, nos últimos anos, o perfil de uso da web mudou. Passamos de um modelo em que tínhamos os motores de busca como centrais para outro em que somos governados/administrados pelos feeds que recebemos. Nossa atenção é constantemente chamada, procuramos muito menos pelos conteúdos.

O impacto disso seria muito menor e muito mais relativo se esses algoritmos fossem públicos e mais administráveis por quem os usa. Mas, muito pelo contrário, são secretos, têm propriedade intelectual e caminhamos para uma internet muito mais centralizada, comandada por poucas empresas de tecnologia, ainda que espalhada por diversos servidores ao redor do globo, que agregam todos os serviços que usamos: redes sociais, e-mail, plataformas de publicação de textos e vídeos.

Desde meados da década de 1950, após o grande trauma da Segunda Guerra Mundial, confiamos na comunicação como meio para a paz e estabilidade. Nossa utopia orientadora, de raiz iluminista, nascida no meio do século passado, mas vigorosa no século XXI, diz que é possível resolver quase todas as nossas diferenças pela via da comunicação, pequenas ou grandes. Guerras seriam evitadas se os povos tivessem maior entendimento mútuo. Conflitos de classes poderiam ser resolvidos pela negociação e pelo entendimento. A comunicação científica poderia melhorar as relações entre ciência e sociedade, pavimentando um futuro de progresso científico para todos.

A internet, surgida pelas mãos e ideias de pesquisadores que foram fundamentais na construção dessa utopia, encaixou-se como uma luva. Para a luta pela democratização da comunicação ela apareceu como fórmula mágica, como saída não conflitiva para a concentração dos meios. Não seria mais preciso brigar por uma divisão justa do espectro eletromagnético (aquele em que se distribui desde os canais de televisão, de rádio, aos sinais de celular): a internet multiplicaria exponencialmente os canais; cada pessoa, grupo ou coletivo poderia ser um canal. Mas pouca gente se atentou que esses cabos, domínios, IPs, servidores, têm dono, são privados. E quem é dono manda. Com as redes sociais esse cenário parece ter se agravado, as pessoas estão concentradas em “jardins murados”, em ambientes restritos da web que se parecem com condomínios privados. Por um lado, aqueles que não têm voz nos canais tradicionais motivam-se a disputar espaço e a falarem para muita gente ali reunida. Por outro, vivem as limitações materiais e de software de um espaço que não controlam.

É preciso politizar a internet e entender seu uso e funcionamento material na atualidade. Ao mesmo tempo, é preciso recuperar e analisar criticamente as utopias da comunicação que nos informam. Assim, poderemos entender as mudanças pelas quais passam o sistema informativo do mundo, podendo agir conscientemente sobre ele em direção a estruturas democráticas de comunicação. A ação e a cultura política não são decorrências mecanicamente determinadas por essas estruturas, mas podem tender para cenários desagregadores, autoritários e contrários aos direitos humanos se assim forem manipuladas.


Bibliografia

Evangelista, R. A.; Kanashiro, M. M. 2013. “Cibernética, internet e a nova política dos sistemas informacionais”. In: Giuseppe Cocco (org.) Gabinete digital: análise de uma experiência. Corag e Imprensa Oficial do Estado do Rio Grande do Sul: Porto Alegre. (http://gabinetedigital.rs.gov.br/wp/wp-content/uploads/2013/09/Gabinete-Digital_-An%C3%A1lise-de-uma-experi%C3%AAncia.pdf)
Kanashiro, M. ; Bruno, F. ;Evangelista, R. ; Firmino, R . “Maquinaria da privacidade”. Rua (Unicamp) , v. 2, p. online, 2013. (http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/capaArtigo.rua?id=211)
Breton, P. (1995) Norbert Wiener e a emergência de uma nova utopia. Disponível em http://cibercultura.fortunecity.ws/vol1/breton.html Acesso em 20/08/2011
Barbrook, R. Futuros imaginários: das máquinas pensantes à aldeia global. Ed. Peirópolis, 2009

Pequeno, V. “Nos subsolos de uma rede – sobre o político no âmago do técnico”. Dissertação de mestrado. MDCC-IEL-Unicamp. 2015.



Rafael Evangelista

Fonte: OUTRAS PALAVRAS