setembro 09, 2015

“A História da Eternidade”, de Camilo Cavalcante: o pão, a arte, o amor e a culpa. POR Fabricio Ramos (ARTE_DOCUMENTO)

PICICA: "O pão, o mar, os desejos, o amor e a culpa. A nossa eterna história, ambientada num vilarejo agreste do sertão nordestino, contada através do cinema de Poesia"

“A História da Eternidade”, de Camilo Cavalcante: o pão, a arte, o amor e a culpa

O pão, o mar, os desejos, o amor e a culpa. A nossa eterna história, ambientada num vilarejo agreste do sertão nordestino, contada através do cinema de Poesia

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“A História da Eternidade” parece um título pretensioso para um filme, mas o primeiro longa do diretor pernambucano Camilo Cavalcante, que também assina o roteiro, cumpre a promessa, por assim dizer, que o título insinua, embora por caminhos mais poéticos do que dramáticos, mais sinestésicos do que narrativos.

Dividido em três atos, o filme conta três histórias de amor que irrompem num vilarejo do árido sertão nordestino. A poesia e a música são a substância dessa história de amores, desejos e culpas, de fome de pão e de mar no sertão.

O velho e angustiado sonho sertanejo de ver o sertão virar mar se realiza numa das mais belas sequências do filme, protagonizada por Irandhir Santos (o Tio) e Débora Ingrid, que é a jovem Afonsina. Essa é uma das histórias de amor, por assim dizer, que compõem a narrativa – subtrama do filme que trata de sonho, tragédia e arte. Irandhir, aliás, impressiona com a naturalidade e a potência com que representa um artista mambembe, sensível e epiléptico, absolutamente incompreendido por todos, e desprezado por seu irmão, o rude pai de Afonsina.

Abordando o sofrimento e a morte, a perda e a solidão, o sonho e a opressão, e até flertando com incestos, o filme confronta as imposições das necessidades materiais num ambiente de precariedade, mas não de miséria, com os anseios mais profundos por arte e fantasia, liberdade e prazer, que compõem a dimensão moral e psicológica do ser humano, a nossa dimensão espiritual, se quisermos.

Afonsina pede que o pai a leve para ver o mar, mas o pai a acusa de louca de pedir isso numa situação difícil daquelas, mas promete matar quatro bodes e dar uma festa no bar do vilarejo. Durante a festa, o pai – um amargo e autoritário patriarca – se ressente de toda a sua vida jogando-se aos pés da filha e dizendo que fez tudo errado, reconhecendo (ou melhor, gritando sob um estado de catarse emocional e embriaguez alcoólica) seus erros da forma mais errada possível, pelo menos para Afonsina. Levando uma vida de servidão familiar, a bela e debutante menina sertaneja, entretanto, sempre exibe um sorriso sonhador, misto de sedução e ingenuidade, de alegria verdadeira e de sonhos vivos, intensos, teimosos. Só a Arte sinestésica do Tio permitirá a Afonsina ver o mar em pleno horizonte do sertão.

(Em tempo, as repetidas e sonoras cenas das refeições da família de Afonsina, seu pai e quatro irmãos, me remeteram ao “O Cavalo de Turim”, filme de Béla Tarr, sobre o qual já comentei aqui nesse blog. No filme de Bela Tarr havia um clima de desolação, de miséria e ascese (até mesmo verbal), enquanto no filme de Camilo Cavalcante, ao contrário, revela até uma relativa fartura, uma comida saborosa, uma certa alegria no apetite, sem que isso implique em qualquer redução da atmosfera de austeridade da vida no vilarejo. “Nem só de pão vive o homem”).

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Querência, mulher que perdeu o filho e cai num estado de melancolia e tristeza, primeiro enfrenta e depois aceita o insistente, na verdade persistente “fazer a côrte” do cego sanfoneiro, que a deseja com sinceridade e leveza (curiosamente, o cego, segundo Querência, vê muito melhor do que muita gente que tem o olho são, e não à toa, ele usa um relógio de pulso). Das três histórias, é a que apresenta o tema do sofrimento e redenção.

Uma senhora sexagenária vive só, cuida da igreja, sempre pronta a acudir, cheia de verdadeira compaixão, os moradores nas situações difíceis (a personagem que poderia ser a típica beata, mas que no filme não é nada caricata). Recebe com muita alegria a visita do jovem neto que tinha ido para São Paulo com os pais e que volta tatuado, diferente para aquela avó, fugindo secretamente de problemas que arranjou na metrópole violenta. De repente, a avó se percebe sexualmente viva e ativa, mas culpa-se por isso ao ponto de se autoflagelar tal como os penitentes daquelas irmandades mais radicais. Ela está viva, sexualmente viva, como um vulcão, mas está só com o neto e tenta a todo custo reprimir os seus pungentes desejos. É nessa história, dentre as três “histórias de amor”, que percebemos alguma presença da psicanálise na narrativa de Cavalcante, embora a inserção do neto queira remontar a temáticas sociais.

Em suma, o filme se divide naqueles três atos, chamados 1. “Pé de Galinha”, 2. “Pé de Bode”, e 3. “Pé de Urubu”, todos alegorizados com a imagem de uma árvore com os respectivos animais em seus galhos, na abertura de cada ato. Este último ato é um tanto exagerado em relação ao clima poético e sutil dos anteriores, mas é também o ato da eclosão da tragédia e da catástrofe, e também da redenção e da comunhão, sentimento este, o de comunhão, que perpassa todo o filme em diferentes e controversas manifestações, mas que culmina, bem no final, nos acenos mútuos entre a jovem Afonsina, a redimida Querência e a reprimida e culpada avó sexagenária. Um aceno entre gerações, entre mulheres de um mundo quase isolado com uma história e uma eternidade própria, e entre descaminhos de vidas que convivem, mas não se conhecem no sentido mais íntimo, e que vivem.

Como já dito, predomina no filme a sinestesia poética, que estimula e impacta as emoções do espectador, seja através da belíssima fotografia de Beto Martins, com sua luz especialmente cuidadosa, seus planos e ângulos bonitos e eficazes narrativamente, ou através da música, esta um elemento substancial do filme para o envolvimento do público. A trilha sonora original foi criada por Zibgniew Preisner, autor das músicas dos filmes de Krzysztof Kieślowski, e por Dominguinhos, que morreu em 2013, sendo este – a trilha para o filme – o seu último trabalho.

O cineasta Camilo Cavalcante, que possui importante experiência em curtas e médias (que o tornaram uma espécie de colecionador de prêmios) fez um filme de extrema beleza fotográfica e temática, poética e narrativa. Vou procurar ver com urgência seus trabalhos anteriores (inclusive o curta homônimo desse filme que é objeto deste texto), e esperar com ansiedade sua próxima história, digo, filme (que não deverá levar uma eternidade para aparecer, visto que ele já está trabalhando no seu segundo longa). Recomendo que todos façam o mesmo: vejam tudo desse cara.



Por Fabricio Ramos.

Fonte: arte_documento

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