setembro 17, 2015

Judith Butler: Queer para um mundo não binário. Por Inês Castilho (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Filósofa sustenta, num seminário em SP: “homem” e “mulher” são conceitos mutáveis – e movimentos desviantes de gênero são parte de uma vasta galáxia anticapitalista"

Judith Butler: Queer para um mundo não binário


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Judith Butler, criadora da teoria Queer: “Biologia não é determinação, gênero resulta de uma combinação única em cada um de nós”

Filósofa sustenta, num seminário em SP: “homem” e “mulher” são conceitos mutáveis – e movimentos desviantes de gênero são parte de uma vasta galáxia anticapitalista

Por Inês Castilho

Outrora eram os comunistas. Nos dias que correm, é contra os estudos de gênero que a Tradição, Família e Propriedade do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira investe suas armas: meia dúzia de gatos pingados protestando parados na porta do Sesc Vila Mariana, em SP, durante o “I Seminário Queer – Cultura e Subversões das Identidades”, realizado pelo Sesc e Revista Cult com curadoria de Richard Miskolci, da UFSC.

Bizarro!… Tudo a ver com a Teoria Queer, que trouxe até aqueles amplos espaços um caldeirão fervente de pessoas e informações desviantes. Uma figura masculina de seios fartos passaria numa direção, e já um jovem de fita no cabelo e andar flutuante em saia longa, em outra. No entorno, apreciável diversidade de raça, classe e gênero – o público mais pra idoso e popular do Sesc misturado àquele farfalhar em torno da Teoria Queer e de sua criadora, a filósofa norte-americana Judith Butler, da Universidade de Berkely, California (EUA).

Mas, o que é Queer, afinal? A tradução literal da palavra é estranho, esquisito, bizarro, diferente, anormal, desnaturado, extraordinário, notável. Seu contrário: convencional, normal, ordinário. Foi usada como xingamento à comunidade gay nos anos 70, nos EUA.

“Queer é um movimento que toma uma direção não esperada, que contesta as normas dominantes, de modo que lésbicas, gays, intersex, bissexuais, trans, trabalhadoras sexuais podem viver com menos medo no mundo” – disse Judith Blutler, em coletiva a jornalistas e ativistas que anteceu sua conferência magna, proferida em 9 de setembro. “Nasce com o feminismo, não pode ser dissociada do feminismo” – insiste.

E o que teria gênero a ver com biologia, na Teoria Queer? E o que dizer daquelas pesquisas que querem provar que mulheres têm algumas qualidades, e homens, outras? A pergunta, tão básica quanto fundamental, veio de uma jovem jornalista de Sorocaba.

“Há entre o homem e a mulher diferenças hormonais, fisiológicas, nos cromossomos. Mas embora trabalhemos com pensamento binário, há variações, um continuum entre um e outro. Pesquisas revelam que biologia não é determinação, que o gênero resulta de uma combinação única, em cada um de nós, de fatores biológicos, sexuais, de função social, do auto-entendimento, da representação de gênero. Descobriu-se que os hormônios são interativos e há várias maneiras em que podem ser ativados. Inclusive o desenvolvimento dos neurônios está ligado ao ambiente. O que acontece depende em parte da vida que se vive.”


A vida que se vive

Ao trazer a biologia para o campo do social, desde Simone de Beauvoir, a filósofa desestabilizou ainda mais a matriz heteronormativa que mantém o poder patriarcal – atribuindo qualidades essenciais a macho e fêmea, homem e mulher, e tirando proveito disso no mercado — por exemplo com as cores sonegadas às crianças pela tirania do rosa e azul.

Do indissociável nexo com a militância decorre, diz ela, que “para [o movimento, a teoria] Queer é muito importante a ideia de aliança com os despossuídos e atingidos pelas desigualdades econômicas e diversas formas de precariedade que marcam a sociedade contemporânea. A ideia de aliança deve continuar se expandindo, para a gente se tornar mais forte contra as crescentes desigualdades econômicas, racismo, homofobia e sexismo.”

Alianças são complexas, ela lembra: “Nem toda aliança é amor. Às vezes nos aliamos para estabelecer o direito de amar e viver sem ser submetido à violência”, e isso não significa que amemos e desejemos aquela pessoa ou grupo a quem estamos por nos aliar.

“Atuar em conjunto não pressupõe nem produz uma identidade coletiva”, e sim relações que “incluem disputas e rupturas, mas também apoio e solidariedade.” Em suma, é preciso aprender a suportar nossas irmãs e irmãos… Conciliar menos, suportar as tensões, que tendem a desaguar em novas formações compreensivas.

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Carla Rodrigues, palestrante e estudiosa da Teoria Queer

Em sua conferência magna, denominada “Rethinking vulnerability and resistance”, ou “Repensando vulnerabilidade e resistência”, mediada pelo também filósofo Vladimir Safatle [aparentemente pouco à vontade como coadjuvante], Butler toma o lado meio cheio do copo ao considerar a vulnerabilidade como ingrediente mesmo da resistência – e não daquilo que leva à derrota, à exclusão e ao medo. Dedica-se hoje principalmente à questão da precariedade e das mobilizações globais contra as desigualdades econômicas, sociais e políticas, que produzem cada vez mais populações “designadas como dispensáveis e indignas de luto”.

Em sua obra “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”, que funda a Teoria Queer – seu único livro publicado aqui por uma década, até a safra atual, como lembra Carla Rodrigues, Butler se pergunta se o “sexo” teria uma história ou se é uma estrutura dada, em sua materialidade. Responde então que essa aparente estrutura se daria pela repetição de discursos, ações, gestos e representações de âmbito cultural, constantemente reforçando a construção de corpos masculinos e femininos tais como os percebemos. Daí a noção de gênero como performance defendida por Butler. E as identidades pensadas no plural.

Discursos como armas de guerra

Assim, movimentos e políticas denominadas Queer podem seguir fazendo sentido se a palavra mantiver pelo menos dois fundamentos, afirma Butler: “um deles diz respeito à divergência, ao desvio da norma, ao abrir-se para possibilidades” – a descentralização da sexualidade genital monogâmica marcada pela heterossexualidade que desestabiliza os arranjos hegemônicos. O outro se refere à superação das desconfianças e antagonismos gerados pelo desconhecimento e medo do Outro, de modo a possibilitar alianças entre grupos e pessoas. A afirmação das diferenças que não podem ser superadas por uma identidade unificada.

Uma elaboração que leva à formulação de Carla Rodrigues, da URFJ, sobre o “fundamento contingente”, apenas contingente, que pode nos reunir para planejar a ação. Lembrando que todos temos um “lugar de fala”, e que a estética Queer só se sustenta se for marcada pelas diferenças, sem que sejam criadas novas normatizações.

E à fala de Berenice Bento, da UFRN, quando em sua recente viagem à Palestina pode conferir o poder que os discursos hegemônicos sobre a sexualidade ocidental ocupam nas guerras internas e externas. “Entendi que além de muros, bombas, exércitos, drones há discursos que funcionam como armas de guerra, já antecipando as conclusões dessa comunicação. Direitos das mulheres, direitos LGBT direitos humanos têm sido tropos que servem também às tropas. As categorias analíticas e políicas sexualidade, gênero e raça têm pouco valor explicativo se consideradas fora de contextos mais amplos e complexos. A pergunta que eu me faço atualmente é: como ter um pensamento engajado em torno dos direitos humanos, sexualidade e gênero, por exemplo, e não me deixar enredar por discursos que justificam guerras e genocídios utilizando a suposta superioridade moral de determinadas formas de ler os corpos, os desejos e os gêneros.”

O fato de a palavra gênero ter sido excluída dos planos de educação não significa muito, afirmou com tranquilidade Judith Butler, diante da pergunta sobre a recente disputa legal em SP. “Não é o fim da história, haverá oposição a essa exclusão. Os direitos humanos não foram retirados dos planos.”

Que somos interdependentes, mergulhados num caldeirão de culturas, e que gênero e sexo não podem ser vistos de forma isolada foram para mim as principais afirmações desta festa Queer em São Paulo. Que, como toda grande festa, teve ampla circulação de afetos. Tensões com a instituição, pela impossibilidade da filósofa Márcia Tiburi realizar a performance que havia planejado, a falta de espaço para declarar nome social na inscrição do evento e, principalmente, pela ausência de palestrantes negros e trans. E momentos da mais pura inspiração, êxtase amoroso pelo conhecimento e possibilidade de ação.

Para além de todas as críticas, o seminário trouxe aos estudos de gênero uma ferramenta epistemológica que pode orientar a articulação dos movimentos feministas, LGBT e de gênero com um amplo espectro de movimentos sociais de raiz popular – articulação essa por demais necessária para reforçar as nossas barricadas.



Inês Castilho

Jornalista, integra o corpo editorial de Outras Palavras. Foi editora do jornal Mulherio, realizadora dos filmes de curta-metragem Mulheres da Boca e Histerias e cofundadora do Nós Mulheres, primeiro jornal feminista de São Paulo.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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