outubro 20, 2015

Abençoados os que esquecem. POR Rejane Borges (OBVIOUS)

PICICA: "Apesar da máxima "abençoados os que esquecem" - baseada em uma frase de Nietzsche - não há como abafar os ecos de relações ou circunstâncias que um dia vivemos. O filme oprime o comportamento prepotente do ser humano, que tenta recriar a memória para evitar a dor."

Abençoados os que esquecem

Eu gosto de Charlie Kaufman por causa de sua sensibilidade curiosa, para não dizer esquisita. Seus roteiros são todos mais ou menos pelo avesso. Genais. Kaufman é um homem que lê um poema e inspirado escreve um roteiro. Assim nasceu “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, EUA, 2004).

brilho eterno michael gondry eternal sunshine spotless mind

"Feliz é a inocente vestal / Esquecendo-se do mundo e sendo por ele esquecida / Brilho eterno de uma mente sem lembranças / Toda prece é ouvida, toda graça se alcança". Esse poema de Alexander Pope é citado no insólito "Brilho Eterno" do diretor Michael Gondry. O poema remete à idéia de que a única maneira de ser feliz é esquecer-se e tornar-se esquecido, pois somente na ausência de qualquer lembrança existe toda a graça. Pope fala de mentes imaculadas, corações resguardados, os quais não são assombrados por lembranças do que um dia foi e nunca mais será.

"Brilho Eterno" ostenta um elenco de grandes nomes como Jim Carrey, Kate Winslet, Mark Ruffalo, Kirsten Dunst, Elijah Wood e o veterano Tom Wilkinson - talentoso e premiado ator que já engrandeceu, além do cinema, produções da TV americana.

O roteiro foge completamente ao padrão de Hollywood - como era de se esperar, tratando-se de Kaufman, o mesmo gênio que escreveu o excêntrico "Quero ser John Malkovich" (Being John Malkovich, EUA, 1999) e "Adaptação" (Adaptação, EUA, 2002). Ele consegue atribuir às personagens sentimentos tão densos que quase necessitam de ser humanizados. Os labirintos narrativos do roteiro prendem o expectador a uma trama supra-sensível, estendendo-se à metafísica - característica de Kaufman. Fragmentado em diversos temas, como amor, passado, memória, solidão, etc., o filme permite variadas formas de interpretação.

brilho eterno michael gondry eternal sunshine spotless mind
brilho eterno michael gondry eternal sunshine spotless mind

Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) formam um casal que poderia ser considerado o mais "anti-herói" dos casais do cinema contemporâneo. Eles simplesmente não se adaptam - no entanto, se amam. Joel é um homem sensato, contido e tímido. Um pouco neurótico e melancólico. É mais pessimista e impõe limites aos seus próprios sonhos, preferindo os pés no chão. Clementine leva a vida menos a sério e é mais espontânea do que Joel, beirando uma irresponsabilidade inerente de quem é mais atrevido. Ela abusa da liberdade de se pronunciar e, apesar da aparência forte, é uma pessoa bem sensível. 

O relacionamento é rompido e, frustrada, Clementine submete-se a um tratamento experimental que promete apagar da memória os momentos que viveu ao lado de Joel. No entanto, Joel descobre o que ela fez e, sentindo-se agredido, resolve fazer o mesmo. Porém, desiste de esquecê-la, por tomar consciência de que apagando-a de sua memória, apagará também uma parte de si mesmo. É então que começa uma saga dentro da mente de Joel para salvar Clementine do esquecimento e escondê-la em momentos de sua vida em que ela não esteve. Como sua infância, por exemplo.

brilho eterno michael gondry eternal sunshine spotless mind
brilho eterno michael gondry eternal sunshine spotless mind

O surrealismo da trama é potencializado pela fantástica fotografia e cores da película. O filme joga com a plasticidade da nossa memória, um lugar cujo suporte físico é enorme. A trama possui um viés cômico e ao mesmo tempo romântico, com um ritmo atemporal.

Apesar da máxima "abençoados os que esquecem" - baseada em uma frase de Nietzsche - não há como abafar os ecos de relações ou circunstâncias que um dia vivemos. O filme oprime o comportamento prepotente do ser humano, que tenta recriar a memória para evitar a dor.

Assim como o amor define a nossa humanidade, a dor a define também.

brilho eterno michael gondry eternal sunshine spotless mind
brilho eterno michael gondry eternal sunshine spotless mind

Quem assina a fantástica trilha sonora é o compositor norte-americano Jon Brion, com músicas que acompanham perfeitamente o ritmo da película. O filme levou a estatueta do Oscar pela categoria "Melhor Roteiro Original", além de ter sido nomeado na categoria de "Melhor Atriz" pela espetacular interpretação de Kate Winslet.

Fontes das imagens: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7.


rejane borges

Gosta das cores de folhas secas ao chão. E das cores das folhas velhas dos livros.

Fonte: OBVIOUS

Nenhum comentário: