outubro 17, 2015

Levante de 2013 e o Rio de Janeiro, por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Este livro é criatura de um acontecimento. Henry Miller certa vez começou um livro com um uivo[1], mas este deveria começar com um grito. Um longo grito acompanhado do toque do gongo chinês. O anúncio de uma mixórdia sonora, entrecortada e dissonante, como num filme de José Mojica Marins[2]. Só assim, ao exacerbar o desconcerto e a estridência de uma voz estranha, se pode dar conta da emergência que, em meio a pressões sociais extremas e resilientes confinamentos históricos, explodiu em ruas, redes e praças no Brasil de 2013" 

Levante de 2013 e o Rio de Janeiro
trecho do prefácio de La multitud se fue al desierto, edição argentina de A multidão foi ao deserto (Bruno Cava, ed. AnnaBlume, nov. 2013), no prelo.


gongo

Este livro é criatura de um acontecimento. Henry Miller certa vez começou um livro com um uivo[1], mas este deveria começar com um grito. Um longo grito acompanhado do toque do gongo chinês. O anúncio de uma mixórdia sonora, entrecortada e dissonante, como num filme de José Mojica Marins[2]. Só assim, ao exacerbar o desconcerto e a estridência de uma voz estranha, se pode dar conta da emergência que, em meio a pressões sociais extremas e resilientes confinamentos históricos, explodiu em ruas, redes e praças no Brasil de 2013.

Passados dois anos daquela experiência, prevaleceu o esquecimento. Não só enquanto esquecimento voluntário, sob a judiciosidade dos inspetores da história, concentrados na tarefa de tampar brechas, neutralizar devires e restaurar consensos: nada a ver por aqui, em frente. Vândalos, românticos, black blocs. A postos ao lado do consenso, a polícia.

Também, enquanto esquecimento involuntário, do tipo que é bom mesmo que tenhamos esquecido e que indicia que o acontecimento percolou outro estrato da existência, onde coabitam forças obscuras e pré-conscientes. Um esquecimento de outra natureza do que aquele desejado pelas instâncias da ordem, limitadas ao plano do discursivo e das narrativas.

Porque acontecimentos de acontecimentos, como foi em 2013, condensam para os pósteros uma memória noturna, cuja incandescência age no forro da lembrança, atrás da cortiça da história, no limiar do perceptível. Não é jamais possível recordá-la em sua posição imediata de desejo. E não se poderia estar-lhe à altura por meio da simples recordação, de uma vulgarizada “disputa de narrativas”, tanto mais na moda quanto mais vazia a disputa real. Tempos drásticos afinal não podem ser relembrados. Mas podem ser revividos. Sua reviviscência, no entanto, exige que aconteça com outras coordenadas, noutras conjunturas, noutros usos e funcionamentos. Só se pode reatualizar junho de 2013 diferente daquilo que foi e qualquer outra expectativa não passa da nostalgia dos impotentes. Junho de 2013 pode ser muita coisa, mas é triste quando é reduzido à categoria de desqualificação do real realmente existente, em nome da lembrança. Recordações não podem se arrastar como sacos de entulho. Fazer isso é não prestar a atenção ao acontecimento.

É por isso tudo que, neste livro, longe de mim definir um tempo, estabelecer as suas características ou preenchê-lo de forma narrativa. Não se pode medir, delimitar o tempo, mas senti-lo, sentir a força do tempo. Levantes assim acontecem de noite, quando nos perdemos e, correndo o risco de andar em círculos, somos consumidos pela febre que nos possui. Aceitar correr este risco implica a coragem do erro, o ziguezaguear, a arte da deambulação.

O leitor logo vai perceber que a ação do livro se desenrola ao redor do Rio de Janeiro. É porque, no levante de 2013, o Rio de Janeiro serviu de sinédoque para o bloco inteiro de mobilizações que sucederam em mais de 400 cidades de todos os tamanhos e em todas as regiões do país, em variadas tendências e culminâncias. O Rio foi a metrópole brasileira em que a ocupação de ruas e redes atingiu não apenas o maior número e a maior duração temporal, como também a maior intensidade. Não foi acidente.

O Rio de Janeiro é uma cidade tumultuária[3]. Espremido entre a rocha e o oceano, perpassado por mata agressiva que parece reivindicar o espaço de volta para si, a história do Rio é a história de fluxos turbilhonantes de corpos, riquezas, migrações, violências, sublevações e artimanhas. O Rio do carnaval veneziano, do tropicalismo baiano, do purgatório da beleza e do caos. Já no século 16, foi um dos palcos para a maior resistência armada levantada pelos indígenas contra a invasão portuguesa. Os tamoios liderados por Cunhambebe lutaram por décadas. O enclave na Baía da Guanabara também foi disputado por aventureiros, piratas e corsários de vários países, chegando a sediar, por curto período, o primeiro projeto da França Antártica. Portal para a escravidão no Brasil por três séculos, onde desembarcaram milhões de escravos, até hoje o Rio é a maior cidade africana fora da África. Reagrupados em quilombos e irmandades religiosas, os negros se apropriaram das ferramentas do colonizador e retomaram a cidade de diversos modos. Dos tambores do quilombo do Catumbi às práticas do candomblé, hoje vivem no funk e no hip hop, num artifício de resistência que se debate entre a brutalidade e a criatividade, entre a tonificação da luta e a captura pelos mercados.

A partir do século 19, nas concentrações malditas nos bairros portuários, a força quilombista se mesclou com as tradições dos recém-aportados operários europeus, o anarquismo e o comunismo. Em 1880, os cariocas se insurgiram contra o ajuste da passagem dos bondes em um vintém. Uma taxa relativamente pequena, mas suficiente para deflagrar a grande revolta. As ruas foram tomadas por barricadas durante uma semana de manifestações em que bondes foram destruídos, trilhos arrancados e lojas saqueadas. Cinco mil manifestantes se juntaram às portas do palácio imperial aos gritos de “Fora o Vintém!”. Apesar de um número desconhecido de mortos entre os manifestantes, a estimativa varia entre 3 e 15, o aumento foi cancelado. Roteiro parecido voltaria a acontecer em 1904, numa sublevação geral contra a campanha de vacinação obrigatória promovida pela jovem República e seu positivismo científico. A Revolta da Vacina levou à declaração do estado de sítio em todo o Rio de Janeiro e à intervenção do exército, com um saldo final de 30 mortos em duríssima repressão. No século 20, a exploração dos fluxos de vida pela cidade foi novamente a causa imediata de mais outros dois levantes de grande porte[4].

Em 1959, os protestos miraram no serviço das barcas que fazem a travessia entre o Rio e a cidade vizinha Niterói. A pilhagem e depredação não atingiram apenas os terminais marítimos e as embarcações, mas também as casas da família que monopolizava o serviço. Finalmente, em 1987, já no período da “redemocratização”, mais de 120 ônibus foram depredados e incendiados numa revolta que se apossou do centro da cidade. Ela só viria a amainar com o anúncio pelo governo da revogação do aumento das tarifas. Como havia acontecido há mais de cem anos no Vintém e como viria a acontecer em 19 de junho de 2013, quando o prefeito do Rio de Janeiro cancelou o aumento da passagem em 20 centavos.

Indígenas, degredados, aventureiros europeus, jesuítas, negros fugidos, anarquistas de Módena, marinheiros insubmissos, operários nordestinos, baianos tropicalistas são apenas algumas figuras de uma cidade que se constituiu em constante relação com seu exterior. O Rio se engendrou nesse fora de si próprio, cidade aberta. Uma exterioridade que não se deixa interiorizar pela ordem urbana, ansiosa por medir, quantificar e reduzir a multiplicidade nas métricas de poder e dinheiro. Uma metrópole cuja vitalidade vem de habitar continuamente a tensão com o seu próprio fora. Nem tanto como “o peixe que habita o oceano em que nada, mas sim como o oceano que nada dentro do peixe, penetrando-o e constituindo-o como figura do oceano”[5]. Um fora imanente, um mundo e um mar dentro da cidade, “um mesmo Oceano para todas as gotas”[6]. Por isso, se em cada gota nada um peixe virtual, em cada rua do Rio de Janeiro pulsa a inteira insurreição dos escravos. A história das lutas do Rio de Janeiro, dos tamoios aos mascarados de 2013, consiste nessa incessante antitotalização que se recompõe mesmo quando cercada por políticas de higienismo urbanista, cultural turn, caveirões e “choque de ordem”. Durante os séculos de formação do Brasil, os bandeirantes e missionários se esforçaram por interiorizar o devir-mundo dos brasis[7], – seja interiorizando os sertões pela acumulação primitiva, seja o domínio da subjetividade na moral obediente e hierárquica do catolicismo. “Pela harmonia universal dos infernos, chegaremos a uma civilização!”[8]

Engendrado nos fluxos do Atlântico[9], era preciso riscar as fronteiras pelo continente inóspito, submeter os elementos e esculpir o mestiço útil. As elites coloniais, imperiais e republicanas tiveram de lidar, infernalmente, com esse Fora quimérico que, tal qual a floresta circundante e a imanência do mar, a todo o momento ameaçava tragar a cidade na desordem. Diferentes regimes de dominação se sobrepuseram: soberano, disciplinar e controle, ante o que as resistências se viram na contingência de enfrentar e o os levantes transbordar. A gestão dessa multidão tumultuária não poderia ser senão violenta. Um biopoder racialmente modulado [10] que até hoje cobra o preço por quilo de carne, mediante os milhares de mortos a cada ano e outros tantos abandonados ao cárcere, em renitente estatística. A configuração sincrética das tecnologias de poder responde, no Rio de Janeiro, à multiplicidade de focos de afirmação biopolítica, culturas de resistência e poder constituinte, em contínuo antagonismo interno.

Este, o contrapelo da história repetido em junho de 2013.

(soa o gongo).

(…)


NOTAS

[1] “Au! Au au! Au! Au! Latindo na noite. Latindo, latindo. Eu berro mas ninguém responde. Eu grito mas não produzo um eco.” MILLER, Henry. Nexus. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Cia das Letras.

[2] Conforme abertura de Esta noite encarnarei no teu cadáver (José Mojica Marins, Brasil, 1967). No Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=lOSiNKSAJcU
Ver também AGRA, Lucio. Monstrutivismo: reta e curva das vanguardas. São Paulo: Perspectiva, 2010.

[3] ASSUMPÇÃO, E. A.; FRANCO, T. B.. Por uma cidade menor: hegemonia e resistência na cidade do Rio de Janeiro. Lugar Comum (UFRJ), n. 39, p. 145-155, junho de 2013.

[4] LOPES, Roberto. 1959, 1987, 2013… e tudo por causa do transporte, de novo. Site Universidade Nômade, março de 2014. http://uninomade.net/tenda/1959-1987-2013-e-tudo-por-causa-do-transporte-de-novo/

[5] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco. In A inconstância da alma selvagem; e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2002. p. 430.

[6] “Uma mesma voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as gotas, um só clamor do Ser para todos os entes.” DELEUZE, Giles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 417.

[7] COCCO, Giuseppe. Mundobraz. O devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2009.

[8] Porfírio Diáz interpretado por Paulo Autran, no filme “Terra em Transe” (Brasil, 1967), de Glauber Rocha.

[9] ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes; formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

[10] NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe. Glob(AL); biopoder e luta em uma América Latina globalizada. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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