outubro 28, 2015

O Julgamento de Orestes. Por Pedro Lacerda (OBVIOUS)

PICICA: "Rodrigo Siqueira, em seu mais recente filme, Orestes, aproxima a obra de Ésquilo, Oréstia, ao estado militarizado brasileiro, traçando um profundo retrato da violência institucional."

O Julgamento de Orestes


Rodrigo Siqueira, em seu mais recente filme, Orestes, aproxima a obra de Ésquilo, Oréstia, ao estado militarizado brasileiro, traçando um profundo retrato da violência institucional.

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Orestes. Escrito e dirigido por Rodrigo Siqueira. 

Existem tantas nuances não reveladas sobre a ditadura brasileira que por mais que se façam filmes, escrevam livros ou sejam concedidas entrevistas, o assunto parece nunca se esgotar. Mais importante do que esgotar o assunto é nunca esquece-lo. Prestando tal serviço o filme de Rodrigo Siqueira aproxima vítimas da violência estatal praticada no período da ditadura militar à vítimas da violência estatal praticada pela polícia militar nos dias atuais.

O documentário possui várias inserções dramáticas, por isso é considerado um “docudrama” ou "psicodrama". Em dado momento um grupo de pessoas composto por vítimas da ditadura, parentes de vítimas dos abusos da polícia e uma defensora das vítimas da violência civil debatem e encenam passagens nos porões do local onde se situava o DOPS em São Paulo. Na terceira parte do filme um júri é montado para julgar um caso fictício onde Orestes (em referência à trilogia Oréstia, escrita por Ésquilo em 458 a.C. e que retrata um matricídio onde Orestes foi absolvido em júri popular, dando fim a lei do olho por olho, dente por dente) seria um indivíduo que viu o pai, informante da ditadura, matar a sua mãe e anos depois, crescido, comete parricídio como forma de vingança. O caso é baseado também no caso de Soledad e do cabo Anselmo, ele informante da ditadura e ela militante de esquerda, ambos tiveram um romance durante o período em que o militar atuara infiltrado. O cabo Anselmo teria entregado Soledad e mais cinco militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) para o então delegado do DOPS, Sérgio Fleury, que os executou.

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O filme consegue transparecer de forma eficiente a atualidade dessa discussão, trata em diversos momentos do sentimento de vingança que torturados poderiam sentir por torturadores e vítimas de violência poderiam sentir contra os criminosos. Em um dos pontos mais chocantes da trama, a defensora das vítimas de violência civil (sempre trajada com uma camiseta onde se lê "justiça é o que se busca"), num momento de sinceridade desconcertante diz ser a favor da pena de morte, mas se a polícia, dentro de uma troca de tiros, conseguir matar o bandido, já seria suficiente para ela. O longa transcende a questão histórica e ganha contornos pessoais em diversos momentos, no entanto tal fato não empobrece as histórias ali contadas mas apenas delineia os tipos de indivíduos que são vítimas dessa violência policial ou da violência perpetrada durante a ditadura. Se nos anos sessenta e setenta o alvo era a militância de esquerda, nos dias atuais o poder militarizado ataca os pobres e marginalizados, sempre protegido pelos autos intitulados “resistência seguida de morte”. Acabar com a vida de um suspeito (e em muitos casos a suspeita sequer se sustenta) parece ser a forma encontrada para “solucionar” um caso, banalizando por completo a vida humana.

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A mesma falta de explicação que ainda persiste em diversos casos de desaparecidos na época da ditadura hoje se vê presente no caso de jovens mortos pela polícia. Antes de se transformar em um discurso unilateral, o filme tangência a postura da polícia quando um policial afastado fala sobre o despreparo da corporação e sobre como o treinamento não é suficiente para lidar com a sociedade civil. Talvez fosse o ponto do longa que merecesse um pouco mais de atenção já que no terceiro ato, tomado em grande parte pelo julgamento, o filme perde potência, efeito que poderia ser evitado se a discussão da militarização do estado fosse mais aprofundada.

O discurso reacionário proferido pela defensora das vítimas da violência civil se mostra sem sentido em quase todos os momentos. Ela, tentando dar um tom eufêmico para suas declarações, se perde dentro de seu discurso, efeito que não pode ser acusado de ser conseguido graças à edição já que o filme contem diversos plano-sequência dos debates e das encenações, o único momento em que fica clara a montagem do filme é durante o julgamento no ato final, quando erros de continuidade evidenciam a encenação, algo que não prejudica o filme já que esse momento é abertamente uma discussão representada, não espontânea.

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A atualidade do conteúdo do filme se torna mais flagrante pelos recentes acontecimentos políticos do país, onde percebemos uma clara guinada à direita das instituições e do eleitorado. Tal manifestação que antes era velada acaba por tomar corpo e sair às ruas. Inclusive, quando um dos personagens do filme pesquisa por cabo Anselmo no Google o que se vê são diversas imagens do próprio militar, de Soledad, de corpos e uma imagem de Lobão, músico que surge recentemente na mídia muito mais por sua postura conservadora do que por seu trabalho artístico.

É praticamente impossível pensar em um Estado que não tenha cometido crimes contra sua população. É, no entanto, imprescindível que onde quer que ocorram tais crimes eles sejam apresentados à sociedade, denunciados e investigados. Se o estado detém o monopólio da violência é mais do que urgente que a sociedade civil se informe e se posicione a respeito da utilização desse artifício. O filme de Siqueira joga luz sobre um tema que é de amplo conhecimento mas ao mesmo tempo de pouca divulgação.

Pedro Lacerda

Pedro Lacerda, filho de Robson Lopes e Marivalda Lacerda, do Vale do Jequitinhonha - MG.

Fonte: OBVIOUS

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