novembro 26, 2015

Deleuze – L de Literatura (RAZÃO INADEQUADA)

PICICA: "Houve uma época em que li muito mais filosofia, pois fazia parte da minha profissão, do meu aprendizado, e não tinha muito tempo para ler romances. Mas a vida inteira, eu li grandes romances. Cada vez mais, aliás. Mas será que me é útil para a filosofia? Claro que sim. Por exemplo, a Fitzgerald, que é, por que não?, um romancista bastante filósofo, eu devo muito. O que eu devo a Faulkner também é muito grande. Estou esquecendo muitos outros. Mas tudo isso se explica em função do que já dissemos. Avançamos muito, como você já percebeu. É aquela história: o conceito não existe sozinho. O conceito, ao mesmo tempo que cumpre sua tarefa, ele faz ver coisas, está ligado aos perceptos. E o percepto, a gente o encontra em um romance. Há uma comunicação perpétua entre conceito e percepto. Há problemas de estilo que são os mesmos em Filosofia, como em Literatura. É uma questão muito simples: os grandes personagens da Literatura são grandes pensadores. Eu acabo de reler vários livros de Melville. Está claro que o Capitão Ahab é um grande pensador, que Bartleby é um pensador. É um outro tipo de pensador, mas, mesmo assim, é um pensador. Eles nos fazem pensar. De maneira tal que uma obra literária tanto traça conceitos, de forma implícita, quanto traça perceptos . Isso é certo. Mas não cabe ao literato, pois ele não pode fazer tudo ao mesmo tempo. Está tomado pela questão do percepto, em nos fazer ver e perceber e em criar personagens! Imagine o que é criar personagens! É uma coisa impressionante! O filósofo cria conceitos. Mas acontece que estes transmitem muito, porque o conceito, sob alguns aspectos, é um personagem. E o personagem tem a dimensão de um conceito. Pelo menos, eu acho. O que há de comum entre as duas atividades, a grande filosofia e a grande literatura, é que ambas testemunham em favor da vida. É o que chamei de potência há pouco. É por isso que os grandes autores não têm muito boa saúde. Existiram algumas exceções, como o caso de Victor Hugo. Eu não devia dizer que não têm boa saúde, pois alguns tinham uma saúde excelente. Mas por que existem literatos com saúde fraca? São os mesmos pelos quais passa uma enxurrada de vida. É justamente por isso. Em relação à saúde fraca de Spinoza ou à de Lawrence, o que os unia? Era quase o que eu dizia sobre a queixa: eles viram alguma coisa grande demais para eles. Eram visionários. Viram algo grande demais e não foram capazes de suportá-lo. Deixou-os arrasados. Tchekov seria um deles. Por que Tchekov ficou tão arrasado? Ele viu alguma coisa. Filósofos e literatos estão no mesmo ponto. Há coisas que se consegue ver e das quais não se pode mais voltar. Que coisas são estas? Varia muito de um autor a outro. Em geral, são perceptos no limite do suportável ou conceitos no limite do pensável. É isso. Entre a criação de um grande personagem e a criação de um conceito, eu vejo muitas ligações. É como se fosse a mesma empreitada." 


CP: L de Literatura. Um filósofo cria conceitos e um romancista cria personagens. Mas os grandes personagens de romance são pensadores. Elementar, meu caro Watson! L de Literatura.

GD: Chegamos ao L.

CP: Já?

GD: Sim!

CP: A Literatura povoa seus livros de filosofia e a sua vida. Você lê e relê muitos livros de literatura, do que chamam de “Grande Literatura”. Sempre tratou os grandes escritores como pensadores. Entre Kant e Nietzsche, você escreveu Proust e os signos, que é um livro famoso. Lewis Caroll, Émile Zola, Masoch, Kafka, a Literatura inglesa e americana… Parece que é mais através da Literatura do que da história da filosofia que você inaugura um novo pensamento. Gostaria de saber se você sempre leu muito.

GD: Sim. Houve uma época em que li muito mais filosofia, pois fazia parte da minha profissão, do meu aprendizado, e não tinha muito tempo para ler romances. Mas a vida inteira, eu li grandes romances. Cada vez mais, aliás. Mas será que me é útil para a filosofia? Claro que sim. Por exemplo, a Fitzgerald, que é, por que não?, um romancista bastante filósofo, eu devo muito. O que eu devo a Faulkner também é muito grande. Estou esquecendo muitos outros. Mas tudo isso se explica em função do que já dissemos. Avançamos muito, como você já percebeu. É aquela história: o conceito não existe sozinho. O conceito, ao mesmo tempo que cumpre sua tarefa, ele faz ver coisas, está ligado aos perceptos. E o percepto, a gente o encontra em um romance. Há uma comunicação perpétua entre conceito e percepto. Há problemas de estilo que são os mesmos em Filosofia, como em Literatura. É uma questão muito simples: os grandes personagens da Literatura são grandes pensadores. Eu acabo de reler vários livros de Melville. Está claro que o Capitão Ahab é um grande pensador, que Bartleby é um pensador. É um outro tipo de pensador, mas, mesmo assim, é um pensador. Eles nos fazem pensar. De maneira tal que uma obra literária tanto traça conceitos, de forma implícita, quanto traça perceptos . Isso é certo. Mas não cabe ao literato, pois ele não pode fazer tudo ao mesmo tempo. Está tomado pela questão do percepto, em nos fazer ver e perceber e em criar personagens! Imagine o que é criar personagens! É uma coisa impressionante! O filósofo cria conceitos. Mas acontece que estes transmitem muito, porque o conceito, sob alguns aspectos, é um personagem. E o personagem tem a dimensão de um conceito. Pelo menos, eu acho. O que há de comum entre as duas atividades, a grande filosofia e a grande literatura, é que ambas testemunham em favor da vida. É o que chamei de potência há pouco. É por isso que os grandes autores não têm muito boa saúde. Existiram algumas exceções, como o caso de Victor Hugo. Eu não devia dizer que não têm boa saúde, pois alguns tinham uma saúde excelente. Mas por que existem literatos com saúde fraca? São os mesmos pelos quais passa uma enxurrada de vida. É justamente por isso. Em relação à saúde fraca de Spinoza ou à de Lawrence, o que os unia? Era quase o que eu dizia sobre a queixa: eles viram alguma coisa grande demais para eles. Eram visionários. Viram algo grande demais e não foram capazes de suportá-lo. Deixou-os arrasados. Tchekov seria um deles. Por que Tchekov ficou tão arrasado? Ele viu alguma coisa. Filósofos e literatos estão no mesmo ponto. Há coisas que se consegue ver e das quais não se pode mais voltar. Que coisas são estas? Varia muito de um autor a outro. Em geral, são perceptos no limite do suportável ou conceitos no limite do pensável. É isso. Entre a criação de um grande personagem e a criação de um conceito, eu vejo muitas ligações. É como se fosse a mesma empreitada.

CP: Você se considera um escritor em Filosofia? Um escritor literariamente falando?

GD: Não sei se me considero um grande escritor em Filosofia, mas sei que todo grande filósofo é um grande escritor.

CP: Não há uma nostalgia da obra romanesca quando se é um grande filósofo?

GD: Não, porque é como se dissesse a um pintor: “Por que não faz música?” Pode-se conceber um filósofo que também escreva romances. Sartre tentou fazer isso. Não foi nenhum… Para mim, Sartre não era um romancista, mas ele tentou. Será que houve outros grandes filósofos que escreveram romances importantes? Nenhum que eu conheça. Mas sei de filósofos que criaram personagens. Isso já aconteceu. Platão criou personagens. Nietzsche criou personagens, como Zaratustra. Aí estão os tais cruzamentos dos quais estamos sempre falando. A criação de Zaratustra, tanto poética quanto literariamente, foi um grande sucesso, assim como os personagens de Platão. São pontos em que não se sabe mais o que é conceito e o que é personagem. Estes talvez sejam os momentos mais bonitos. 02’15’58 – 2’17’32

CP: E seu amor por autores menores, como Villiers de I’Isle-Adam ou Restif de la Bretonne? Sempre cultivou este afecto?

GD: É muito estranho ouvir dizer que Villiers de I’Isle-Adam é um autor menor. Vamos à pergunta. Respondendo a esta pergunta… É uma coisa vergonhosa, uma vergonha mesmo. Quando era muito jovem, eu tinha a seguinte atitude: gostava de ler a obra completa de um autor. Assim, eu acabava me apegando, não por autores menores — mas muitas vezes coincidia —, por autores que tinham escrito muito pouco. Isso porque Victor Hugo me parecia grande demais, me parecia tão inacessível que eu chegava ao ponto de dizer que Victor Hugo era ruim, mas que Paul-Louis Courier era… Eu conhecia perfeitamente Paul-Louis Courier. Ele tinha escrito muito pouco. Eu tinha esta preferência por autores chamados “menores”. Villiers de I’Isle-Adam não era um autor menor.

CP: Não, é um autor fabuloso, mas menor em relação aos grandes da época.

GD: Joubert! Eu conhecia a obra de Joubert perfeitamente. Além do mais, o que era vergonhoso, me dava um certo prestígio conhecer autores desconhecidos ou pouco conhecidos. Eram manias… Levei muito tempo para aprender que Victor Hugo era grandioso e que a imensidão da obra não era pejorativa. Meu amor por autores menores… Mas é verdade que a Literatura russa não consiste apenas em Dostoiévski e Tolstoi. Quem ousa chamar Leskov de autor menor? Há coisas muito impressionantes na obra de Leskov. Autores como ele são geniais. Não tenho muita coisa a dizer sobre isso, mas esta busca por autores menores já acabou. O que eu gosto muito é de encontrar em um autor pouco conhecido alguma coisa que me parece um conceito ou um personagem extraordinário. Isso sim! Mas não é uma busca sistemática.

CP: Fora Proust, que é um grande livro seu sobre um autor, a Literatura está tão presente na sua filosofia que ela é uma referência. Mas você nunca dedicou um livro à Literatura, um livro de pensamento sobre a Literatura.

GD: Não tive tempo, mas vou fazê-lo. Vou fazê-lo porque tenho vontade.

CP: De crítica?

GD: Sim, sim… Sobre o problema… Sobre o que significa escrever na Literatura. Para mim. Com tudo o que tenho pela frente, vamos ver se tenho tempo.

CP: Queria fazer uma última pergunta. Você lê e relê os clássicos, mas parece que conhece pouco os autores contemporâneos ou que não gosta de descobrir a Literatura contemporânea. Você prefere ler ou reler um grande autor a ver o que está sendo lançado ou o que é contemporâneo.

GD: Não é que não goste. Entendo o que quer dizer e vou responder muito rápido. Não é que eu não goste. É por ser uma atividade especial e muito difícil. Precisa ter uma formação. Em uma produção contemporânea é muito difícil ter gosto. É exatamente como quem conhece novos pintores. É algo que se aprende. Admiro muito as pessoas que freqüentam galerias e dizem ou sentem que naquele trabalho existe de fato um pintor. Eu não sou capaz disso. Preciso de tempo. Para você ter uma idéia, eu precisei de cinco anos para entender a novidade de Robbe-Grillet. Beckett, eu vi logo! Quando falavam de Robbe-Grillet, eu era tão burro quanto os mais burros falando de Robbe-Grillet. Não entendia nada! Precisei de cinco anos. Não sou um descobridor. Em filosofia, eu me sinto mais confiante, sou sensível aos novos tons e também ao que é repetição de coisas já ditas mil vezes! Nos romances, sou muito sensível e seguro o suficiente para reconhecer o que já foi dito ou não tem interesse algum, mas saber se é novo… Uma vez, eu senti isso. Foi com Farrachi. Descobri do meu modo alguém que me pareceu ser um ótimo romancista jovem, que é Armand Farrachi. Para esta pergunta que você me fez é totalmente pertinente, mas eu lhe respondo dizendo que não se deve achar que se possa sem experiência julgar o que se faz. Mas o que eu prefiro e acontece com frequência — e muito me alegra — é quando o que eu faço tem alguma repercussão no trabalho de um jovem escritor ou pintor. Não quero dizer que, por isso, ele ou eu somos bons. Não é isso. Mas é assim que tenho algum tipo de encontro com o que se faz atualmente. A minha insuficiência radical relativa ao julgamento é compensada por estes encontros com pessoas que fazem coisas que batem com o que eu faço e vice-versa.

CP: Na pintura e no cinema, estes encontros são favoráveis, pois você vai até lá. Mas não imagino você entrando numa livraria à procura de livros lançados nos últimos meses.

GD: Sim, é verdade. Talvez esteja ligado ao fato de que a Literatura não anda bem hoje em dia. Não é uma ideia só minha, nem preconcebida. Está evidente para todos. É uma literatura tão corrompida pelo sistema de distribuição, prêmios, etc. que nem vale a pena.

CP: Então, vamos para a letra M.

Fonte: RAZÃO INADEQUADA

Nenhum comentário: