novembro 26, 2015

Se a realidade for demasiada, corta: mete um sonho. Por Christiane Brito (OBVIOUS)

PICICA: ""Se a realidade for demasiada, corta; mete um sonho" foi, talvez, a única máxima na vida do mestre que nunca se ateve a regras. Temia o extremo oposto, o fanatismo, onde quer que se apresentasse. 

Por isso foi expulso do colégio de jesuítas quando menino, por isso deixou a militância no comunismo, por isso escreveu uma espécie de antibiografia, na qual, contrariando paradigmas da modalidade, confessou fracassos e atacou amigos com a honestidade despudorada que levou para o túmulo.

Ao rever o passado, acaba sendo mais romântico do que jamais se permitiu."

Se a realidade for demasiada, corta: mete um sonho


Essa máxima talvez seja única na vida do cineasta espanhol que nunca se ateve a regras: Luis Buñuel. Ele a aplicou na autobiografia, metendo sonhos na cena da morte para a qual não estava preparado.

jennielit-1024x725.jpg

Uma imagem vale mais do que mil palavras até que a perda da memória revele o contrário. Então as palavras se tornam preciosas e vale a pena ir atrás de um milhar delas para narrar histórias.
Foi o que o cineasta Luis Buñuel fez aos 82 anos quando decidiu escrever a autobiografia “Meu último suspiro”. O título acabou por se tornar profético já que o espanhol morreu pouco depois, aos 83. 

Afiado na palavra “falada” (era um grande debatedor de ideias), Buñuel pediu ajuda a um amigo para conseguir escrever. 

“Não sou um homem da escrita. Após longas conversas, Jean-Claude Carrière, fiel a tudo o que lhe contei, me ajudou a escrever este livro”, diz no prefácio da obra. 

Carrière aceitou a missão com vantagem, já que foi co-roteirista dos clássicos Bela da tarde (1967) e O discreto charme da burguesia (1972), além de assinar o filme com o qual Buñuel se despediu da carreira: Esse obscuro objeto do desejo (1977). 

Optou por uma narrativa simples, no entanto lírica e discretamente bem-humorada, exatamente como o amigo de longa data.

best-luis-bunuel-films big.jpg

"Se a realidade for demasiada, corta; mete um sonho" foi, talvez, a única máxima na vida do mestre que nunca se ateve a regras. Temia o extremo oposto, o fanatismo, onde quer que se apresentasse. 

Por isso foi expulso do colégio de jesuítas quando menino, por isso deixou a militância no comunismo, por isso escreveu uma espécie de antibiografia, na qual, contrariando paradigmas da modalidade, confessou fracassos e atacou amigos com a honestidade despudorada que levou para o túmulo.

Ao rever o passado, acaba sendo mais romântico do que jamais se permitiu.

Eleva o amor ao topo da arte quando elege "O retrato de Jennie" (1948) como um dos filmes preferidos (a história, baseada em fatos reais, mostra um pintor que só consegue se tornar artista depois de amar uma mulher). Descreve o filme como "...misterioso, poético e largamente incompreendido"

Quanto à liberdade, ideal pelo qual sempre lutou na obra e na vida, Buñuel acaba por identificar com uma conquista pessoal, criativa, portanto a salvo dos tiranos do mundo. Exulta: 

"Felizmente, em algum lugar entre o possível e o mistério, está a imaginação, a única coisa que preserva a nossa liberdade..." 

Entre os momentos tocantes da autobiografia está a explicação do que seja “uma vida”, concebida a partir da degeneração na velhice, com as crescentes perdas de audição e visão que levaram o cineasta à aposentadoria “precoce”:

“Você tem que começar a perder sua memória, em lapsos breves ou duradouros, para perceber o que ela significa em nossas vidas. Uma vida sem memória não é vida de modo algum, assim como uma inteligência impossibilitada de expressão não é inteligência de fato. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento e pode ser até mesmo a nossa ação no mundo. Sem ela, somos nada.”

O retiro voluntário que empreendeu do trabalho mergulhou o cineasta não só nas lembranças da infância distante como também na imaginação da morte. Com relação a essa última, decidiu dirigir a cena para espantar o horror do desconhecido. 

Fez duas versões:

A morte racionalizada
 
“Há muito tempo que o pensamento da morte me é familiar (…), nunca quis ignorá-la, negá-la. Mas não há grande coisa a dizer da morte, quando se é ateu como eu. É preciso morrer com o mistério. Algumas vezes digo para mim próprio que gostaria de saber, mas saber o quê? Não se sabe nem durante, nem depois. Depois do Tudo, o Nada”.
 
A morte espetacularizada

“Imagino inúmeras vezes uma última partida. Convoco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu. Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos, confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro”. 

Madrid 1926 From left Salvador Dali, Moreno Villa, Bunuel, Garcia Lorca, and Jose Antonio Rubio Sacristan.jpg


Por fim, o aclamado cineasta formula um último desejo, representativo do seu interesse eterno pelos destinos do mundo, mais forte do que o desprezo pela mídia:

“Uma coisa lamento: não saberei o que vai acontecer. Apesar do meu ódio à indústria da informação, gostaria de poder levantar-me entre os mortos a cada 10 anos, dirigir-me a uma banca e comprar vários jornais. Não pediria nada mais”.

 

Christiane Brito

Não sou confiável porque já passei dos 30, prefiro que riam comigo do que me levem a sério..

Fonte: OBVIOUS

Nenhum comentário: