dezembro 14, 2015

Nossas crianças e nossos policiais. Por Roberto Tardelli (JUSTIFICANDO)

PICICA: "Meninos e meninas, sabe-se lá com que centelha de cidadania, acesa em que momento que não soubemos captar, saíram às ruas em São Paulo e destruíram o que restava da educação conservadora, burocrática e anacrônica, que estava representada por policiais militares infinitamente mais fortes, mais armados, infinitamente mais experientes, que trataram meninos e meninas com bombas de gás, bombas de efeito moral, perseguição, porrada, cassetete. Nossas crianças foram espancadas em via pública. Nossas crianças foram espancadas em via pública pela Tropa de Choque da Polícia Militar. Parece um desatino dizer isso, mas a Tropa de Choque da Polícia Militar foi atiçada feito uma matilha de cães ferozes contra adolescentes, prenhes de razão, como diria o samba de Chico Buarque, que protestavam contra a eufemisticamente chamada reestruturação escolar." 

Nossas crianças e nossos policiais

  •  
  • Roberto Tardelli
    Advogado


Nos anos setenta, um filme espanhol, Quién Puede Matar a um Niño, de Chicho Ibañez Serrador, contava a história de um casal de turistas em férias pelo mediterrâneo e que resolve visitar uma ilha, tranquila e sossegada, fora da muvuca do verão ibérico.  Quando chegam, começam a notar, incomodados, que alguma coisa ali se passara, até que descobrem que a ilha é habitada somente por crianças, que, animadas por uma força inexplicável, haviam assassinado todos os adultos, executados, um a um. Mais não conto para não estragar a surpresa que o bom roteiro prepara para os espectadores. 

O fato cruciante da ficção é imaginar o dia em que aqueles que sofrem a opressão adulta, possam vir a se rebelar e possam virar o jogo, acuando quem sempre os acuou e os manipulou, quem sempre deles se aproveitou. Aqui ou ali, é vero, vêem-se reações isoladas de crianças ou jovens. Mas, são gestos pontuais, dispersos, normalmente tratados pela grande mídia como mais um exemplo de uma juventude que não respeita os mais velhos, de uma juventude que não preserva seus valores, ou melhor, os valores de seus pais. Um juiz da infância, de uma cidade do interior de São Paulo, determinou a internação de uma adolescente, ao que consta com peculiaridades que a fariam centro de atenções de saúde mental, porque a menina teria ameaçado uma professora e riscado seu carro. Foi internada para aprender que o professor é uma espécie de divindade suprema em sala de aula. Fosse adulta, nenhum juiz, por mais autoritário que fosse, decretaria a prisão preventiva de alguém que, em tese, cometesse crimes de ameaça e dano, fosse estudante, vendedora de coxinha ou dançarina de funk. Mas, a garota amargou uma internação moralista e arbitrária, em nome da preservação do totem, a autoridade intangível do professor. Dou-me o direito de pensar se a cada paciente que ameaçasse o médico em nossos maravilhosos hospitais públicos, fosse para o xilindró, ao invés da enfermaria.  

Meninos e meninas, sabe-se lá com que centelha de cidadania, acesa em que momento que não soubemos captar, saíram às ruas em São Paulo e destruíram o que restava da educação conservadora, burocrática e anacrônica, que estava representada por policiais militares infinitamente mais fortes, mais armados, infinitamente mais experientes, que trataram meninos e meninas com bombas de gás, bombas de efeito moral, perseguição, porrada, cassetete. Nossas crianças foram espancadas em via pública. Nossas crianças foram espancadas em via pública pela Tropa de Choque da Polícia Militar. Parece um desatino dizer isso, mas a Tropa de Choque da Polícia Militar foi atiçada feito uma matilha de cães ferozes contra adolescentes, prenhes de razão, como diria o samba de Chico Buarque, que protestavam contra a eufemisticamente chamada reestruturação escolar. 

Alguns adolescentes foram encaminhados a um Distrito Policial. Ato infracional/crime que lhes foi imputado: desobediência e obstrução de via pública. Desobediência, rapaz! Uma manifestação com milhares de pessoas e pegaram presos algumas crianças desobedientes que não atenderam à ordem legal de funcionário público. Que ordem eles descumpriram? Com o perdão pela vulgaridade, chega a ser ridícula a situação, prender manifestantes por desobediência. É de arrancar os cabelos. Obstruir via pública, até onde sei, é, ainda, um sonho da turma mais feroz que habita o parlamento, mas nem sei se virou lei. Teria um tipo penal estranhíssimo: obstaculizar indevidamente via pública... seja lá o que for isso.  

Nossas crianças que evidenciaram a barbárie adulta não foram as responsáveis pela destruição do sistema público de ensino, não foram elas que transformaram as escolas em verdadeiros bunkers, não foram elas que entupiram as salas de alunos, não foram elas que aviltaram os salários dos professores, não foram elas que impuseram um currículo alienante e anacrônico, não foram as crianças que estabeleceram o gueto do ensino no Brasil, dividido entre o ensino branco das escolas particulares e o ensino negro e quase-negro das escolas públicas, não foram elas que impuseram a injustiça social. Não foram nossas crianças, tratadas a bomba pela polícia, que tornaram nossa educação um escândalo mundial. Nem dois milhões de ações civis públicas seriam suficientes para tornar esse atraso político-jurídico suportável. 

Chegou o dia do BASTA!, tratamos nossos jovens como se fossem imbecis ou como se fossem bandidos, como se fossem culpados por tudo aquilo que legamos a eles: violência, exploração ambiental predatória, concentração de renda, falta de inclusão, falta da possibilidade de cada um viver seu projeto pessoal de felicidade. Na maioria das vezes em que nos ocupamos deles, é para reduzir a idade de imputabilidade penal, reduzir a idade mínima para o trabalho (escravo), agravar penas, aumentar prisões, sem que nos dediquemos em um décimo desse tempo a refletir seriamente sobre em que momento passamos a odiar nossas crianças, a ponto de tornarmos a adolescência nas periferias das grandes cidades uma aventura perigosa. Matamos jovens, a tiros. Submetemos jovens ao tráfico e à violência policial. E, mesmo assim, temos despudor bastante para culpá-los do mal que nós, adultos, lhes impusemos. Um dia, o barco iria virar e, sem que nos déssemos conta, tão distante que estávamos deles, mostraram-nos sua fibra, seu valor, seu senso de cidadania, enfrentando toda a malha policial, burocrática e tecnicista. Ainda são tratados como vândalos, decerto os primeiros vândalos de que se tem notícias por quererem desesperadamente uma escola pública de qualidade, democrática, ajustada a seu tempo, que lhes possam servir de casulos, de onde sairão as libélulas do amanhã. 

Com os olhos abertos e uma dívida histórica por cobrar, vai ser difícil convencer nossos meninos e nossas meninas a voltarem à sala de aula. 


Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.
 
Fonte: JUSTIFICANDO

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