fevereiro 19, 2016

A Psicose e seus enlaces. Por Vera Pollo (STYLETE LACANIANO)

PICICA: "O Psicótico não é um eremita. A solidão não lhe apraz e Freud chegou mesmo a dizer que, até na confusão alucinatória mais aguda, o Eu não está todo no sintoma. Quanto a Lacan, todos sabem que ele incentivou desde cedo os analistas a se deixarem ensinar pelos psicóticos, declarando que foi Marguerite Anzieu, ou melhor, sua Aimée, quem o conduziu a Freud. Em particular, a “poesia involuntária” de Aimée, conforme o termo forjado pelos surrealistas e que dele obteve total aquiescência."

A Psicose e seus enlaces 

Vera Pollo

verapollo8@gmail.com

 

O Psicótico não é um eremita. A solidão não lhe apraz e Freud chegou mesmo a dizer que, até na confusão alucinatória mais aguda, o Eu não está todo no sintoma. Quanto a Lacan, todos sabem que ele incentivou desde cedo os analistas a se deixarem ensinar pelos psicóticos, declarando que foi Marguerite Anzieu, ou melhor, sua Aimée, quem o conduziu a Freud. Em particular, a “poesia involuntária” de Aimée, conforme o termo forjado pelos surrealistas e que dele obteve total aquiescência. 


 


Ora, se Freud debruçou-se sobre a paranoia e redigiu um texto até hoje atual, no exato momento em que lhe chegaram às mãos as Memórias de Daniel Paul Schreber [1],  Lacan surpreendeu-se ao ver como o sintoma paranoico de Marguerite revertia-se “em efeitos de criação [...] efeitos literários.” [2]  

  

Em psicanálise, a noção de “enlace” -  ato ou efeito de enlaçar ou de enlaçar-se - tal como nos ensina o Aurélio [3], ganha relevo na teoria lacaniana dos discursos e prolonga-se em seu ensino com os Nós. Estes lhe possibilitaram contribuições inéditas, envolvendo conceitos tão importantes como o de fala-a-ser  [4], com que Lacan se referia ao inconsciente dispensando o prefixo negativo, e o de sinthoma,  que designa um enlace não exclusivo da psicose, mas capaz de garantir a subjetivação do psicótico em um modo não delirante. [5]



Desde então, tornou-se possível dizer que uma psicanálise opera sobre o nó do fala-a-ser (le parlêtre) por meio de seus ditos e pela letra (par la lettre) como lugar do dizer. Pois se a fala faz nascer a verdade em sua dinâmica evanescente, o escrito a interroga, por ser da ordem da lógica e alcançar o real.



A prática psicanalítica verifica que, estruturado como uma linguagem, o inconsciente é “o que se lê”. Freud concluiu bem cedo que as imagens do sonho são um sistema de escrita e devem ser tomadas como letras. Já Lacan afirmou ter aprendido com Joyce que existem dois tipos de escrita: uma que resulta da precipitação dos significantes e outra que funciona como uma abertura para o real. Diferentemente da primeira, a segunda não serve para ordenar o pensamento,  é vazia de sentido. Segundo Lacan [6], “o ponto em que, em qualquer uso da língua, se dá a oportunidade de que se produza o escrito” é justo a barra que separa o significante [o que se ouve] do significado [o que se lê]  corresponde.



Não é preciso ir muito longe, para que se perceba que o recurso espontâneo à escrita, enlace do sujeito ao Outro das letras, representa para muitos psicóticos o anseio em produzir uma fixão de gozo, circunscrevendo o jorro por vezes ininterrupto e enigmático dos significantes. Desprovidos da amarra fálica, não fazem ponto de basta na fala. Nem no corpo.



Como salienta Lacan na lição final do “Seminário, livro 3” [7] devemos prestar atenção ao momento em que a psicose de Schreber se declara. Em mais de uma ocasião, ele estivera na situação de tornar-se pai, sem que isso acontecesse. Mas, ao ver-se subitamente investido de uma função socialmente relevante, ocupando uma posição hierarquicamente superior à de homens com vinte anos a mais do que ele, nessa perturbação da ordem das gerações, processa-se a “colisão” do sujeito com “o significante inassimilável”, a partir do qual ser-lhe-á preciso reconstituir um pai. E  Schreber o fará.  Como? Por intermédio da escrita do delírio.





O que acontece com o nó do fala-a-ser na psicose?



A rejeição do pai impostor, sua desqualificação, relembra Bousseyroux [8] é “a condição subjetiva e histórica, na história do sujeito, da escolha da psicose”. Outra coisa é a condição histórica do desencadeamento: encontro no real com Um-pai como “sem razão”. No caso de Schreber, encontro com o professor Flechsig.



Aproximando-se cada vez mais de Joyce, Lacan pôde não apenas delinear com rigor a diferença entre o significante, o significado e a letra,  como produzir a condensação lalíngua e, com ela, igualar a  interpretação analítica ao “tour de force do poeta.” Ao analista, já não basta contrariar o sentido produzindo equívocos, é preciso – ensina Joyce – fazê-lo fracassar.  É preciso esvaziar o duplo sentido do significante, para que se produza uma significação nova.



Joyce foi justamente um homem do sonoro. Que se leia, por exemplo, a Introdução de Bernardina da Silveira para sua versão brasileira de Um retrato do artista quando jovem. Ao falar sobre Finnegans Wake, o próprio Joyce declara que o aspecto musical é fundamental em sua obra. À pergunta que lhe faz Terence  Gervais sobre o livro ser uma mistura de literatura e música, responde categoricamente: “Não. É pura música.” Insatisfeito, o outro acrescenta: “Mas, não há níveis de sentido a serem explorados?” “Não, não. Seu objetivo é fazer você rir”, responde aquele que se auto intitulou “um palhaço irlandês.”



Joyce não era louco, ele o teria sido, se não tivesse corrigido “o erro do nó”. Eis uma das propostas de Lacan. No início do “Seminário 23”, estudando o nó borromeano, ele verifica que a nomeação não é suficiente para que o Real, o Simbólico e o Imaginário se auto/individualizem. Confundem-se. Cada aro do nó é na verdade um toro, portanto, um furo. Para que se individualizem, é preciso que o sintoma, como simbólico ( Σ ), duplique o aro do Simbólico; ou que o sintoma, como real, duplique o Real. Em um caso, como no outro, o sintoma corrige o erro do nó. Isso significa que o erro em um ponto do nó não é suficiente para que não haja mais nó. O nó borromeano é uma cadeia e pode deixar de sê-lo quando há erro, mas pode voltar a sê-lo, e assim permanecer, se um sinthoma a repara.




  

O erro do nó em Joyce deve-se ao fato do Real não passar duas vezes por cima do Simbólico, mas apenas uma.




  

Há, em Joyce, uma carência do pai, o que Lacan chama de Verwerfung de fato. Por um lado, Joyce era sobrecarregado de pai e seus textos dão testemunho disso, mas ele o era justamente em decorrência desta carência. Que se atente, por exemplo, a algumas passagens-vozes de Um retrato.  Stephen se refere a uma voz mundana ordenando que erguesse “com seu trabalho a condição degradada de seu pai e, nesse ínterim, a voz de seus colegas de colégio instava para que ele fosse um camarada decente [...] E era o alarido dessas vozes de ressonância-oca que o fazia se deter irresolutamente em busca de fantasmas” [9].



Um pouco adiante, é o pai quem lhe diz: “Estou falando com você como amigo, Stephen. Não acredito em desempenhar o papel do pai severo. Não acredito que um filho deve temer seu pai. Não, eu o trato como seu avô me tratava quando eu era mocinho. Éramos mais como irmãos do que como pai e filho”(Idem, p.102).



O erro do nó lhe trazia como consequência a frouxidão do corpo e do Imaginário, a qual foi corrigida pelo Ego de artista. Nos termos de Lacan, esta frouxidão, “doença da mentalidade”, foi a razão pela qual Joyce recusou a psicanálise.
 

  

Além de sua Arte-Sinthoma, Joyce empregou mais um recurso de enodamento, suas epifanias enodavam o inconsciente e o Real. Apoiando-se na doutrina de São Tomás de Aquino, Joyce  define suas epifanias como “o instante no qual aquela qualidade suprema da beleza, a radiação límpida da imagem estética, é apreendida luminosamente pelo espírito que foi atraído por sua totalidade e fascinado por sua harmonia, é a estase silenciosa e luminosa do prazer estético, um estado espiritual muito semelhante à condição cardíaca que o fisiologista italiano Luigi Galvani, empregando uma frase quase tão bela quanto a de Shelley, chamou de encantamento do coração” (Idem, p.225)



Desde Stephen Hero, obra de juventude que corresponde à primeira versão de Um retrato do artista, o herói declara sua disposição de lutar com todas as sua armas contra o reino da evidência e do senso comum. Talvez por isso, Lacan [10] tenha declarado não saber ao certo se Joyce escrevia para libertar-se do parasita falador ou para deixar-se invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, sua polifonia. 



O fato é que sua arte é tão particular que faz as vezes de um quarto aro, mantendo juntos o Real, o Simbólico, e o Imaginário: R.S.I. Heresie, heresia, pois Joyce teve uma educação religiosa, mas serviu-se logicamente do que recebeu como sintoma por meio dela.


Com sua arte-sinthoma, produto de seu Ego de artista, Joyce construiu um nome e compensou a carência paterna, ao mesmo tempo em que construiu um laço que ultrapassa várias gerações, fazendo existir mundo afora uma multidão de joycianos.







[1] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia paranoide). Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1911/1976, vol.XII.


[2] LACAN, Jacques. De nossos antecedentes. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1966/1998, p. 70.


[3]  Buarque de Holanda, Aurélio.  Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira (s/d).


[4] Coforme proposta de tradução de  parlêtre proposta por Antonio Quinet em seu Seminário intitulado “Poesia, letra e lalíngua”, em 07 de outubro de 2015, na sede de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de janeiro.


[5] BOUSSEYROUX, Michel. Lacan Borroméen. Creuser le noeud. Point Hors Ligne. Éditions érès, 2014.


[6] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20 : mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2ª edição revista, 1972-73/1985, p. 48.


[7] LACAN, Jacques  Le Séminaire, livre III: les psychoses. Paris : Ed. du Seuil, 1955-1956/1975.


[8] BOUSSEYROUX, Michel. Op Cit., p.167.


[9] JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Tradução: Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 94.


[10] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1975-1976/2007, p.93)

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