março 23, 2016

“Ausência de lideranças esclarecidas” deixou o Brasil num limbo. Reportagem de Camilo Soldado (IHU)

PICICA: "As manifestações pró e contra o Governo do Partido dos Trabalhadores (PT), a divulgação das escutas telefónicas, a tomada de posse e quase imediata suspensão de Lula da Silva, o início do processo de destituição da Presidente Dilma Rousseff. A vertigem com que as notícias chegam do Brasil contrasta com o discurso sereno e pausado do activista indígena Ailton Krenak, que pesa cada palavra antes de a proferir." 

“Ausência de lideranças esclarecidas” deixou o Brasil num limbo

As manifestações pró e contra o Governo do Partido dos Trabalhadores (PT), a divulgação das escutas telefónicas, a tomada de posse e quase imediata suspensão de Lula da Silva, o início do processo de destituição da Presidente Dilma Rousseff. A vertigem com que as notícias chegam do Brasil contrasta com o discurso sereno e pausado do activista indígena Ailton Krenak, que pesa cada palavra antes de a proferir.

A reportagem é de Camilo Soldado e publicado por O Público, 20-03-2016. 


Serve-se das palavras do antropólogo e político brasileiro Darcy Ribeiro para dizer que aquele país “é um processo, uma longa jornada de fazer coisas”, mas considera que talvez essa seja apenas uma forma de tolerância, “uma maneira de desculpar os nossos defeitos, as nossas imperfeições no processo social”.

Aos 63 anos, Ailton Krenak é uma personagem destacada da defesa dos direitos dos indígenas no Brasil. Nasceu no estado de Minas Gerais, no seio da tribo que lhe deu o apelido, e foi eleito para o Congresso em 1986, onde participou na elaboração da Constituição de 1988, na qual foram inscritos os direitos dos índios brasileiros.

Com actividade política e de contestação há cerca de três décadas, observa o seu país e vê um limbo. Os partidos estão em crise – “não representam nada”, como disse várias vezes – e uma rápida saída da actual situação de crise política não se apresenta como o cenário mais óbvio.

Quando conversou com o Público, estávamos a poucas horas da tomada de posse de Lula da Silva como chefe da Casa Civil e a previsão sobre o que aconteceria ao ex-Presidente brasileiro talvez tenha sido mais ajustada do que o próprio calculava. “Não acredito que isso vá acontecer. E se acontecer não vai durar”, comentava, embora com uma explicação diferente para o que veio a suceder. “Só vai tumultuar o resto do caminho, porque o Presidente Lula não é discreto. Estaria mostrando uma incapacidade absurda dele mesmo e da Dilma de se conduzir com alguma clareza num momento da vida política tão tumultuada no nosso país”. O tumulto acabou por acontecer, mas por outros motivos. Um juiz suspendeu a nomeação de Lula horas depois da tomada de posse no Palácio do Planalto, o discurso endureceu de parte a parte e a crise política agudizou-se.

“Quando a gente tem uma ausência de lideranças esclarecidas, que conseguem pautar o debate dentro da sociedade, você corre o risco de oportunistas aparecerem provocando crises e colocando a vida das pessoas em risco”, alerta.

Quando questionado sobre a polarização na sociedade brasileira e uma possível solução, Ailton Krenak olha para o início da década de 90 e para o processo de destituição de Fernando Collor de Melo em busca de um paralelismo. “Vivemos uma situação com alguma repetição desse limbo: tinha uma liderança política muito activa que meteu os pés pelas mãos [Collor de Mello], então o vice-presidente que era apagado, que não tinha nenhuma presença, ocupou o vazio”. Refere-se a Itamar Franco, que “conseguiu tirar o país do limbo da maneira mais discreta possível”, até à eleição de Fernando Henrique Cardoso, “sem conflito nem um desgaste muito grande na vida política do país”.

No entanto, não vê no Governo nenhum actor que possa agora desempenhar esse papel. Nem na oposição. “A crise se alastrou muito no sentido da representação dos partidos”, considera, “talvez essa seja a grande diferença para a década de 90, em que tinha lideranças políticas que estavam queimadas mas alguns partidos ainda tinham o respeito público. Hoje, se qualquer partido for a público ele é xingado”.

Esta situação, interpreta, pode ser entendida como um amadurecimento da compreensão política dos brasileiros, de que os partidos não são capazes de dar conta das necessidades das diferentes comunidades que constituem a sociedade brasileira. Mas pode igualmente ser sinal da corrupção endémica que tantas vezes é apontada ao sistema político do país: acontece “em todos os partidos, com sectores da actividade produtiva, das empresas de engenharia, dos operadores de sistemas de serviço e com a agravante de ter afectado a relação com cidadãos”. Quem exerce cargos públicos, entende, perdeu a percepção sobre a fronteira entre o público e o privado. Se a face mais visível desse entendimento é o suborno (“a propina”), as campanhas eleitorais são a sua mais corpulenta expressão.

Foto: O Público.

Fonte: IHU

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