março 11, 2016

Pelas beiradas dos acervos. Por Alfredo Ribeiro Cristina Zappa (BLOG DO IMS)

PICICA: "O que mais importa no acervo de um artista é, decerto, a sua obra. A foto, o texto, a pintura, o desenho, a partitura musical, a discografia, enfim, o legado da produção autoral é sempre predominante no conteúdo mantido em museus e instituições de preservação do patrimônio cultural. Mas não há acervo que escape de certas miudezas de caráter pessoal que aguçam a curiosidade de pesquisadores e humanizam as joias da coroa de qualquer coleção. O que faz, por exemplo, uma portentosa flâmula do Bangu Atlético Clube, nos arquivos de Elizeth Cardoso sob a guarda do IMS?" 


Pelas beiradas dos acervos
Alfredo Ribeiro
Cristina Zappa (Fotos)


O que mais importa no acervo de um artista é, decerto, a sua obra. A foto, o texto, a pintura, o desenho, a partitura musical, a discografia, enfim, o legado da produção autoral é sempre predominante no conteúdo mantido em museus e instituições de preservação do patrimônio cultural. Mas não há acervo que escape de certas miudezas de caráter pessoal que aguçam a curiosidade de pesquisadores e humanizam as joias da coroa de qualquer coleção. O que faz, por exemplo, uma portentosa flâmula do Bangu Atlético Clube, nos arquivos de Elizeth Cardoso sob a guarda do IMS?



Não há nenhuma pista sobre as circunstâncias da homenagem em tecido franjado nas bordas e dedicatória bordada “à Divina 1986”, bem acondicionada ao lado de seus discos, fotografias, documentos pessoais e um violão de estimação. Pode ser que algum dia alguém se interesse em descobrir a relação do clube com a cantora – sabe-se que ela, rubro-negra de carteirinha, foi amiga do craque Zizinho, que transferiu-se da Gávea para o time da zona oeste carioca nos anos 1950 –, talvez isso não importe a ninguém, mas a flâmula do Bangu está lá, catalogada entre os pertences da intérprete do LP Canção do amor demais, marco inaugural da bossa-nova.

O que no acervo de Elizeth é um detalhe, no de David Zingg é um traço marcante de sua personalidade. O fotógrafo nascido em New Jersey que viveu os melhores anos de sua vida no eixo Rio-São Paulo era um colecionador compulsivo. De, por exemplo, gravatas borboletas, caixas de fósforo, convites para festas de réveillon, buttons (a maioria de campanhas políticas americanas), bilhetes de passagens aéreas e uma série de máscaras de óculos com nariz de porco acoplado, adereço com que se apresentava nas horas vagas de vocalista da banda Joelho de Porco, misto punk-rock de humor brasileiro. Sem falar nas dezenas de caderninhos onde, bem antes da internet, Zingg dava pistas do que estava pensando, como hoje se faz sem nenhuma reserva no Facebook.



A sensação de invasão de privacidade é inevitável quando se penetra no escaninho de curiosidades de um acervo (ambiente exclusivo aos arquivistas do IMS; o público interessado pode ter acesso a esses objetos na Sala de Pesquisa da Reserva Técnica de Acervos). Uma coisa é, por exemplo, o cigarro cenográfico que Paulo Autran pitava no palco, agora guardado como objeto cenográfico de seus personagens no teatro. Mas foi preciso o pessoal da coordenação de Literatura do IMS consultar a viúva do ator, Karin Rodrigues, para esclarecer a presença nesses arquivos de dois baralhos e um conjunto de peças de ‘Mexe Mexe’ (jogo de palavras cruzadas fabricado pela Companhia Lithographica Ypiranga). Sobre as cartas, ela explicou que o casal jogava “todos os dias tranca a dinheiro”, pra valer. “Só nós dois”, à exceção das terças-feiras, quando a mesa de carteado à vera era reforçada pelas “amigas Célia e Selma”. Não raro, a pizza depois da jogatina era o melhor da noite. “Infelizmente, na maioria das vezes o Paulo perdia no jogo”, lembra Karin. Mas ia à forra no ‘Mexe Mexe’ esbanjando, até por força de ofício, habilidade no cruzamento de palavras.



Deve ter a ver também com o trabalho – Pixinguinha quase sempre apresentava-se de terno em público – o conjunto de quatro pares de abotoaduras e cinco gravatas (mais chapéu e lenço) entre as peças que o IMS preserva na memorabilia do flautista, saxofonista, compositor e arranjador de Carinhoso. Mas, no mesmo lote de prateleiras do artista encontram-se um barbeador, uma bomba de chimarrão, um cantil, uma cigarreira, um cinzeiro, um punhal, um relógio suíço e uma bíblia que, acredita-se, pertencia à mulher de Pixinguinha, cuja fé sempre esteve mais ligada ao candomblé.



Em matéria de fé, nenhuma está tão explícita nos acervos do IMS quanto a da poeta Dora Ferreira da Silva. Sua coleção de santinhos – Santo Antônio, em especial –, orações impressas, ordinários de missa, cartões e calendários com motivos católicos bem ilustram o depoimento de Inês Ferreira da Silva Bianchi, filha da escritora, à pesquisadora Enivalda Nunes Freitas e Souza: “Minha mãe sempre teve um sentido religioso que integrava ou alternava elementos pagãos e cristãos. Sua poesia está repleta de exemplos dessa natureza.”



Nem precisa explicar as cinco espátulas para abrir envelopes – uma delas brinde de lançamento do livro Faca de dois gumes, de Fernando Sabino – no acervo de um missivista de primeira como Otto Lara Resende. Sua correspondência pessoal catalogada pelo IMS reúne 7051 documentos entre cartas, bilhetes, telegramas e cartões postais. O hábito de copiar grande parte das mensagens que escrevia torna possível destacar no elenco de destinatários o historiador Francisco Iglésias, o psicanalista Hélio Pellegrino e o escritor Fernando Sabino. Entre os remetentes, Paulo Mendes Campos, Erico Verissimo, Carlos Castello Branco, Rubem Braga e Pedro Nava. Haja espátula!



É também natural que se encontrem desenhos nos arquivos de Erico Verissimo – o escritor costumava ilustrar alguns de seus trabalhos –, mas é curioso que Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade também guardassem em suas gavetas desenhos de próprio punho. (Na ilustração, a coruja é de PMC e a caricatura de CDA).



Por vezes, a singularidade do objeto preservado se manifesta muito mais no rótulo do que no conteúdo. Tudo que faça referência à Guerra de Canudos é de se esperar entre os estudos do jornalista Olímpio de Souza Andrade, especialista na obra de Euclides da Cunha, mas a marca ‘Os Sertões’ em duas embalagens diversas – uma em tablete (200gr) outra em lata (840gr) – de manteiga produzida na Usina de Beneficiamento da Cooperativa Agropecuária de Cantagalo (RJ) Ltda –, merece citação nisso que aqui chamamos de curiosidades de acervo.

Ainda que não seja possível identificar o gosto musical de uns e outros pelo número limitado de LPs agregados ao acervo de Literatura – são apenas 6 os de Clarice Lispector guardados no IMS, entre eles um clássico de composições de Mozart e Schubert –, vale destacar a presença de João Gilberto e do musical Hair em um conjunto de 44 bolachas de vinil na breve discoteca de Otto Lara Resende. As operetas voltaram... é apenas um detalhe na coleção – 740 LPs – do crítico teatral e ensaísta Décio Almeida Prado sob a guarda do IMS.



Todo brasileiro conhece o hino do Rio de Janeiro, mas só os pesquisadores são capazes de ligar o nome do compositor de Cidade Maravilhosa à pessoa do multi-instrumentista (piano, violão, bandolim, violino, banjo, percussão), arranjador, radialista e cantor, cuja coleção foi doada pela família de André Filho ao Instituto Moreira Salles em 2006. Junto com fotografias, recortes de jornal, partituras manuscritas e impressas, documentos pessoais e instrumentos musicais (quatro violões, dois bandolins, um cavaquinho e um alaúde), vieram um cordão de ouro com um crucifixo e uma medalhinha, um anel também de outro gravado de um lado com uma pena de tinteiro, do outro com um globo terrestre, um relógio Mido com mostrador azul e dois isqueiros de época, movidos a fluído, sendo um deles personalizado e o outro estampado em madrepérola quadriculada. Isso que dizer o seguinte: não sei!



Mais surpreendente, e nem por isso menos compreensível, o acervo fotográfico de Haruo Ohara guarda foice, imensas serras manuais e outros instrumentos rudimentares de uso agrícola. Normal na bagagem cultural de alguém que, em 1927, desembarcou aos 18 anos no Brasil com a família japonesa para plantar batatas no interior de São Paulo. Onze anos depois, cultivavam café em Londrina (PR) quando Haruo fez a primeira de uma série de fotos amadoras – antes de se tornarem célebres – sobre o cotidiano da família no meio rural. Nada do que se encontra entre os pertences de alguém que dá título a uma coleção está ali por acaso. Uma boa biografia precisa de um pouco disso tudo.

Instrumentos agrícolas de Haruo Ohara. Fotografias de Ailton Silva.

Fonte: BLOG DO IMS

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