março 25, 2016

SÓ A ARTE ME INTERESSA - Nabokov. Por Dante Donatelli (OBVIOUS)

PICICA: "Como se possível fosse cumprir este ensinamento de Vladimir Nabokov." 


SÓ A ARTE ME INTERESSA - Nabokov


Como se possível fosse cumprir este ensinamento de Vladimir Nabokov.

Em 1917, Vladimir Nabokov era um adolescente mimado e protegido, e não poderia ser diferente, filho da nobreza russa, tinha tido até então uma vida perfeita, cercado de todo conforto e das maravilhas de uma existência verdadeiramente nobre.

Não era e nunca foi um tolo, um boboca como o novo rico burguês afetado e esnobe. Pelo contrário, era introvertido, dedicado ao conhecimento e, sinceramente, ensimesmado sem ser um narcisista. Seu pai era um nobre liberal e não um radical monarquista. Sua mãe, uma mulher educadíssima e conhecedora do que de melhor havia na cultura e na arte europeia.

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PAUL KLEE RUA PRINCIPAL E SUAS TRANSVERSAIS

Nabokov, o gênio literário do século XX, passou seus primeiros dezoito anos de vida entre Moscou, São Petersburgo, a dacha, casa de campo nos arredores de São Petersburgo e o Cotê d´Azur francesa, entre outras paragens menos frequentes em sua infância e adolescência.

Entre seus grandes prazeres, estavam as borboletas, caça-las e coleciona-las, assim como os livros e a aprendizagem das Línguas. Vivendo como nobre, mas com pais de mentalidade burguesa, desfrutou do melhor dos mundos, cresceu em ambiente sereno, tranquilo e erudito. Pode dizer, ao escrever sua autobiografia, que este foi um período feliz de sua vida, dos mais felizes.

A Revolução Russa de 1917, acabou com tudo o que o jovem Vladimir conhecia, tudo simplesmente desapareceu de sua vida, para alguém que então havia entrado apenas e tão somente uma única vez na cozinha de sua própria casa, e assim mesmo o fez por insistência de um primo. Não foi nada fácil a nova realidade advinda da fuga da Rússia e o viver de canto em canto pela Europa como exilado.

As memórias de Nabokov são um primor de beleza e rigor. Sublime com a vida e seu legado para um dos gênios da literatura, mas ela se restringe ao início da vida adulta, mesmo assim, é um dos mais belos livros autobiográficos já escritos. 

A vida madura e criativa não mereceu de Nabokov uma obra, mas a sua correspondência com a mulher de sua vida, se tornou pública, e nela o escritor criativo e genial, se desculpa, mesmo diante das agruras da vida, a perda de tudo que havia conhecido até os dezoito anos, a morte precoce do pai, a posterior perseguição sofrida nos Estados Unidos onde viveu, escreveu, ensinou e foi achincalhado por macarthistas e moralistas, Nabokov só tinha na arte as suas preocupações e atenção, nada mais interessava, e como bem lembra ele em uma das cartas, a busca de um adjetivo preciso para exprimir uma ideia era mais angustiante do que se deixar tomar pelas intrincadas coisas da vida pública e política ou as falácias acusatórias contra sua Lolita, por exemplo.

E aqui me detenho, em admiração e espanto pelo homem, não pelo escritor que amo e admiro, como foi possível passar uma vida, com a sua história, e assim mesmo se fazer indiferente as coisas da vida pública, como? Não tenho respostas. O senso comum iria dizer, era ele um alienado, pura bobagem, estultice dos cegos e fanáticos da direita á esquerda passando pelo centro amorfo. Do alto da minha intenção pretensiosa creio haver em Nabokov um único querer para existência, a busca do belo e toda leveza trazida por ele, viver é duro, de uma aspereza desconfortável no qual o cotidiano parece sempre nos apresentar o horror e sua feiura como a expressão mais límpida do existir. Buscar o belo eis a tarefa de uma vida. A beleza da palavra, a beleza do olhar, a beleza do ouvir, a beleza reconfortante do verdadeiramente belo.

Em um tempo de conflagrações políticas e públicas odiosas e no limiar da violência pura e simples como acatamento definitivo do fim de qualquer diálogo e tolerância, queria eu poder ser um pouco como Nabokov, indiferente a essa cretinice que invade a vida com gritos, xingamentos, barulhos infantis de buzinas e metais como crianças avessas a ouvir, verdades tolas, certezas em “esfumato”, fascistas de toda ordem cumprindo ameaças e bravatas. O horror da feiura é angustiante.

Quereria a todo tempo poder apenas ouvir Beethoven e continuar lendo Cortázar em fantasias perfeitas, mastigando Nava, digerindo Pessoa, dissecando Pound e buscando por qual caminho penetrar as verdadeiras mentiras de Joyce. Me deleitar no ócio delirante que trás tranqüilidade pra alma e acalenta o belo. 

Não consigo, me vejo absorvido em meio ao barbarismo que um dia pensei morto entre nós, os ruídos enervantes de crentes do tipo religioso em busca de absolvição e salvação, e agora encontraram na moraria dos justiceiros um letrado falastrão para lhes salvar. De quebra também desejam purificar a realidade nos salvando do comunismo, dos ladrões, dos seres abjetos gays, sujos, drogados e seja mais o que outras coisas desejam. E eu nem quero ser salvo.

Quereria, mas não consigo ser como Nabokov, amar a arte, e só a arte acima de todas as coisas, inclusive da espécie humana.



Dante Donatelli

Dante Donatelli - "Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida" Bernardo Soares, citado por José Saramago em meio a reflexão sobre a poética de Fernando Pessoa..

Fonte: OBVIOUS

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